Abaixo publicamos uma versão editada da primeira parte do documento de perspetivas aprovado na Conferência Política da Izquierda Revolucionaria do Estado espanhol de 5 e 6 de dezembro, que precede por um mês a invasão do Capitólio dos EUA de 6 de Janeiro.

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Perspetivas para a economia mundial

A crise devastadora que corrói o capitalismo não é fruto de uma pandemia difícil de controlar. As suas causas foram forjadas na última década e são fruto da ditadura do capital financeiro e das suas diretrizes de austeridade e cortes. A terrível desigualdade, o crescente desaparecimento das estruturas de proteção social criadas pelas lutas dos trabalhadores e uma polarização social e política sem precedentes desde os anos 30 do século XX, respondem ao salto qualitativo que sofreram as contradições do sistema e a perda do seu equilíbrio interno.

Os governos capitalistas e as instituições financeiras veem com surpresa os dados e ignoram a direção que os acontecimentos tomaram. Estão perplexos e cheios de incerteza. Apesar do apoio sólido que lhes proporcionam os dirigentes social-democratas e as novas formações da esquerda reformista, temem que novas explosões revolucionárias rebentem com os diques que levantaram. Esta é a causa dos seus apelos insistentes à “unidade nacional” enquanto afiam cuidadosamente as facas.

Não é exagero o que dizemos. No Chile, Bolívia, Peru, Costa Rica, Guatemala, Colômbia, Tailândia, Indonésia, Índia, Nigéria, Sahara, Bieolorrússia, Polónia, França, EUA… em todas estas nações têm havido levantamentos populares e revolucionários, greves gerais ou mobilizações de massas que derrubaram governos, destruíram os planos do imperialismo e puseram em causa a agenda racista, de cortes e austeridade. E tudo isto em plena pandemia.

A situação objetiva complicou-se muito para a burguesia. Noutras condições históricas, um colapso económico da envergadura que vivemos conduziria a uma guerra aberta entre as potências. Embora uma perspetiva semelhante esteja descartada pelo risco de destruição mútua, a luta renhida pelo controlo dos mercados, das matérias-primas, da tecnologia e das áreas de influência vai agudizar-se, criando inevitavelmente novos conflitos militares regionais ainda mais devastadores.

No seu relatório de outono, o FMI fez umas projeções calamitosas para o conjunto de 2020: os EUA registarão uma queda do PIB de 4,3%, a Alemanha de 6%, a França de 9,8%, a Itália de 10,6%, o Reino Unido de 9,8%, o Estado espanhol de 12,8% e o conjunto da zona Euro de 8,3%. Na Ásia, o Japão retrocederá 5,3% e a Índia 10,3%. A contração em África será ainda mais acentuada: o PIB da Nigéria e da África do Sul cairá 4% e 8,3% respetivamente. Quanto à América Latina cairá 8,1% em 2020, e o número de pessoas abaixo do limiar da pobreza passará de 185 para 231 milhões, e na pobreza extrema de 68 para 96 milhões (CEPAL).

Segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, o investimento estrangeiro direto (IED) à escala mundial reduziu-se para metade no primeiro trimestre de 2020 em relação aos 6 primeiros meses do ano passado, mas enquanto o retrocesso nos EUA e na Europa foi de 61% e 29% respetivamente, na China foi só de 4%. A China atraiu investimento estrangeiro na ordem dos 76.000 milhões de dólares durante este período, enquanto que os Estados Unidos teve-o na ordem dos 51.000 milhões.

A China está a resistir melhor ao impacto da crise, mostrando as vantagens que acumulou em relação aos EUA e à Europa. Este é um feito político e económico de grande importância, e marca uma dinâmica histórica apenas comparável ao processo de transformação que atravessaram os EUA entre a Primeira Guerra Mundial e a conclusão da Segunda para se converter na potência capitalista hegemónica.

Se há poucas dúvidas de que o capitalismo de Estado chinês não poderá escapar às tendências recessivas gerais, muito menos quando se trata de uma potência claramente exportadora, pode defender-se mais eficazmente porque dispõe de um músculo produtivo altamente competitivo, e conta com umas das reservas de divisas e um superavit comercial muito superiores ao resto das nações. Os EUA sofreram duramente as consequências do crash de 1929, mas isso não impediu que a sua economia se fortalecesse em relação à competição da sua época.

Segundo dados oficiais, a economia chinesa cresceu 4,9% no terceiro trimestre deste ano, a única das grandes potências que o fez em termos interanuais. Segundo o relatório de outono do FMI, a China acabará 2020 com um crescimento de 1,9%, e a Goldman Sachs prevê que se expandirá 7,5% em 2021.

A recuperação que o FMI prevê para o próximo ano afastará todas as economias da visão otimista do mês de março, a famosa recuperação em V. Os EUA irão crescer 3,1%, a Alemanha 4,2%, França 6%, Itália 5,2%, Grã-Bretanha 5,9%, o Estado espanhol 7,2%, o Japão 2,3% e a Índia 8,8%. Taxas que não vão compensar as quedas abruptas deste ano.

O mais significativo é que estes dados ignoram variáveis que o próprio FMI reconhece como possíveis, como um novo recrudescimento da pandemia e o colapso do sistema financeiro e bolsista pela enorme bolha especulativa gerada nos últimos anos. Assim o dizem no seu relatório de outono: “A incerteza em torno da projeção de base é invulgarmente aguda. O prognóstico baseia-se em fatores económicos e de saúde pública que são inerentemente difíceis de prever (...). Outra fonte de incerteza é a magnitude dos efeitos gerados pela debilidade da procura, o declínio do turismo e das remessas. Um terceiro conjunto de factores tem a ver com o ânimo dos mercados financeiros e as suas implicações para os fluxos internacionais de capital…”.1

O retrocesso da atividade em todos os âmbitos, especialmente acentuado na indústria2 e nos serviços, soma-se ao dos intercâmbios comerciais que segundo as previsões de junho da Organização Mundial do Comércio (OMC), podem cair entre 13% a 32% em 2020. Todos estes elementos dão uma ideia da envergadura da crises de sobreprodução.

A caracterização desde o ponto de vista marxista é clara: a economia mundial atravessa uma grave depressão que se pode prolongar por bastante tempo.

O mecanismo de acumulação na era de decadência capitalista

A economia conseguiu evitar o colapso precariamente graças à injeção massiva de recursos públicos. Segundo o já mencionado relatório do FMI, os governos capitalista injetaram mais de 12 biliões de dólares em planos de resgate para sustentar as grandes empresas, a banca e os consórcios monopolistas. Este não é um aspeto menor. Se esta quantidade fabulosa de capital se tivesse destinado ao investimento na produção, a sustentar o emprego, a melhorar salários, à resolução das necessidades sociais mais prementes, a começar por um investimento massivo na saúde, educação e habitação pública…é indubitável que falaríamos de uma perspetiva muito diferente.

A dívida pública e privada converteu-se numa metástase que corrói o organismo económico: em 2019 alcançou um recorde de 253,6 biliões de dólares, equivalente a 322% do PIB mundial. Do total, a maior parte corresponde às empresas, corporações e entidades financeiras (aproximadamente 222%), que está a ser comprada pelos principais bancos mediante flexibilização quantitativa (quantitative easing, QE, em inglês) e financiada através dos planos de resgate que se puseram em marcha. Este é o mecanismo perverso do processo de acumulação neste período de recessão mundial.

O FMI também assinala que a dívida pública das economias avançadas em 2021 pode superar 124,7% do PIB mundial, mais que o pico alcançado pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, que foi de 124,1%. Nas últimas duas décadas a dívida pública global duplicou a reboque da financeirização da economia e da explosão da bolha depois da Grande Recessão de 2008. Mas só nestes últimos 9 meses, o aumento foi de mais de 20 pontos percentuais.

Os factos continuam a confirmar a análise marxista da crise capitalista e da sua natureza orgânica. Quando se produzem graves quebras económicas, o Estado protege sempre os interesses nacionais de cada burguesia, como cabe ao instrumento de dominação de classe que é. Pode nacionalizar os prejuízos, mas nunca socializar os lucros.

Os keynesianos de todas as cores continuam a ansiar que o Estado jogue um papel “progressista” numa distribuição mais “social” dos recursos e da riqueza, e poder mitigar assim as consequências da crise. Mas estes anseios não correspondem à dinâmica objetiva do processo de acumulação.

Se a burguesia aprovou de maneira excecional um gasto estatal considerável na Europa do pós-guerra, chegando inclusive a nacionalizar setores produtivos e de serviços onde a despesa em capital fixo era muito onerosa, estamos longe de uma situação semelhante. Aquela orientação foi determinada por razões políticas de primeira ordem: tinham que travar o avanço da URSS no continente e da China maoista na Ásia, e resolver a crise revolucionária que atravessava a França, Itália e outros países.

Quando a burguesia europeia se viu obrigada a conceder as reformas que deram lugar ao Estado social, partia de uma destruição massiva de forças produtivas e do apoio efetivo do imperialismo estado-unidense para as reconstruir. Por sua vez, isto correspondia a razões estratégicas, como já mencionamos, que tinham que ver com o fortalecimento do bloco estalinista.

O imperialismo estado-unidense emergiu da guerra como a potência capitalista incontestável: o dólar converteu-se na moeda dominante aceite por todas as nações, possuía as maiores reservas de ouro, era o grande credor do mundo e o seu aparato económico beneficiou das aplicações tecnológicas desenvolvidas pela indústria militar, o que permitiu também um progresso formidável de novos ramos de produção. Onde vemos a semelhança com a situação atual? Basta fazer a pergunta para a responder.

A ideia peregrina de um novo Plano Marshall, que os dirigentes social-democratas tiraram da gaveta no início da atual crise, foi rapidamente descartada. Mas os doutores democráticos do capitalismo não resistem em insistir com este tipo de receitas, e inclusive alguns organismos internacionais, com uma longa trajetória imperialista, juntam-se a eles. Os economistas do FMI alertam que é necessário aumentar a pressão fiscal sobre os ricos e melhorar os serviços de proteção social. O medo de novas explosões revolucionárias é a razão para todas estas recomendações.

Mas porque é que não se praticam? Porque é que as taxas Tobin, as taxas Google, as reformas fiscais para combater a fraude, as normas contra os paraísos fiscais se mantêm meras declarações de intenção cada vez mais impotentes? A razão é evidente: a crise permitiu novas formas de acumulação capitalista e o enriquecimento extraordinário de uma plutocracia que governa o mundo com punho de ferro e se considera intocável.

Esta ditadura do capital financeiro rege a política e a economia em todos os continentes. Que a destruição do meio ambiente se torna cada dia mais insuportável e constitui uma ameaça real para a humanidade; que a miséria, o desemprego e a desigualdade se propagam aceleradamente... pouco importa! A moral burguesa e a demonstração de resultados estão fundidas. Só a revolução socialista poderá parar esta loucura.3

O capital financeiro, fortalecido ainda mais pela injecção de liquidez dos bancos centrais, tornou-se mais omnipresente e parasitário, sem que nenhuma barreira se tenha erguido para o impedir4. E este processo decorre paralelamente à concentração e monopolização do capital a um grau nunca antes visto na história do capitalismo5. A revista Nature6, num recente estudo sobre as alterações climáticas, confirmava até que ponto os recursos naturais do planeta, a produção agropecuária, mineral, farmacêutica ou de qualquer setor, se tinham concentrado nas mãos de um punhado ínfimo de grandes monopólios.

O Estado, longe de impedir, alimenta esta dinâmica, confirmando as palavras de Lenin: “(...)na época do capital financeiro, os monopólios de Estado e os privados se entrelaçam, formando um todo, e como tanto uns como outros não são na realidade mais do que diferentes elos da luta imperialista travada pelos maiores monopolistas pela partilha do mundo.”7

A acumulação com base no mercado da dívida e da engenharia financeira ultrapassou qualquer limite razoável. Por isso o estouro provocado pela covid-19 se tornou tão explosivo e simultâneo. A pandemia é o acidente que expressou a necessidade: a economia mundial está a pagar a fatura das grandes taxas de lucro que o capital financeiro acumulou após a Grande Recessão de 2008 mediante a especulação e a injeção de liquidez pública. Se neste período a crise de sobreprodução não ficou resolvida, com níveis medíocres de investimento produtivo e na criação de emprego, agora tornou-se muito mais virulenta e destrutiva.

A loucura estende-se com o beneplácito das instituições públicas. Vejamos alguns exemplos. Num dos leilões do Banco Central Europeu (BCE), em agosto passado, os bancos privados solicitaram empréstimos num valor superior a 1,3 biliões de euros. Quais eram as condições destes empréstimos? 0,5% de interesse negativo, isto é, o banco central premiava pelo pedido de dinheiro, e outro desconto de 0,5% se os bancos demonstrassem que esses créditos se destinariam a famílias e empresas dos respectivos países. Um negócio bastante vantajoso.

Desde 2015 que o BCE aumentou a “criação de dinheiro” mediante operações de QE até aos 6,2 biliões de euros. Quase 50% do PIB da zona Euro. Mas não temos visto nem sequer uma modesta tendência de inflação perante tamanha expansão de liquidez. A razão é óbvia: a procura está completamente em baixo. O que o BCE realmente procura não é estimular a economia real, mas sim comprar a dívida soberana, da banca, hipotecária ou corporativa, maioritariamente irrecuperável, em troca de dinheiro vivo.

O exemplo da economia estado-unidense também é muito significativo. Já analisámos a envergadura da queda do seu PIB. Outros dados vão na mesma direção: ainda que o desemprego tenha aumentado e a taxa de desemprego se situe nos 7,9%, o valor global de destruição de postos de trabalho não foi compensado. Se entre março e abril se evaporaram 20,8 milhões de empregos, desde então recuperaram-se metade, num ritmo que sofreu um forte desaceleramento em setembro (600.000 novos empregos, em comparação com os 4,8 milhões de Junho e os 2,7 milhões de Maio).

Enquanto isto, o índice S&P, que recolhe a cotação da bolsa das 500 maiores empresas estado-unidenses, fechou o segundo trimestre com o maior lucro desde 1998, de 20%. O Dow Jones, índice das 30 grandes corporações, teve um aumento de 18%, o melhor resultado desde 1987. E as empresas tecnológicas cotizadas no Nasdaq também dispararam no segundo trimestre até conseguirem 31%, um máximo em quase duas décadas.

As maiores empresas estado-unidenses por capitalização do mercado, Apple, Amazon, Alphabet (proprietária da Google), Microsoft e Facebook, que têm um valor combinado de mais de 8 biliões de dólares, jogaram um papel relevante nesta loucura. Segundo o Wall Street Journal, a sua cotação manteve-se numa média 44 vezes superior aos seus ganhos previstos. Em agosto, a capitalização da Apple superou os 2 biliões de dólares, ganhando mais de 1 bilião desde o mês de março quando estalou a pandemia.

A maior parte destes lucros foi obtida através da recompra massiva de ações das próprias empresas, as famosas repo (direito de comprar uma ação a um preço acordado em algum momento no futuro) e onde o capital injetado pelos Estados desempenha um papel essencial (uma parte considerável do fluxo de liquidez do banco central está localizada aqui).

Guerra de classes

“A acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, sofrimento no trabalho, escravidão, ignorância, brutalidade, degradação mental no polo oposto”. Hoje a afirmação de Marx está plenamente confirmada.

O último relatório anual da Oxfam International indica que os 1% mais ricos têm o dobro da riqueza de 6,9 mil ​​milhões de pessoas, 2.153 multimilionários têm mais que 4,6 mil milhões de pessoas, ou que os 22 homens mais poderosos do mundo acumulem mais riqueza do que todas as mulheres de África. Nunca na história da humanidade existiu desigualdade tão extrema.

Mas esta desigualdade não é acidental. A extorsão da força de trabalho é uma das características desta fase de decadência capitalista. A precarização generalizada e os baixos salários têm dado origem à proliferação da figura do trabalhador nos países desenvolvidos que, apesar de ter um ou dois empregos, permanece à beira da pobreza ou na pobreza, sem capacidade de resposta perante qualquer tipo de despesa imprevista ou sem poder chegar ao fim do mês.

Segundo a OIT, no início de 2020 mais de 700 milhões de trabalhadores em todo o mundo ganhavam menos de 3,2 euros por dia, e destes 265 milhões menos do que 1,9 euros. 2.000 milhões tinham empregos informais e 55% não tinham qualquer forma de cobertura social. Logicamente, estes números foram amplamente ultrapassados nestes meses de pandemia.

Os dados relativos às mortes por covid-19, mais de 1,5 milhões em todo o mundo, de infetados, mais de 60 milhões, e as suas profundas consequências para a saúde dão uma dimensão do apocalipse atual. Fatores de saúde e económicos precipitam decisões políticas de longo alcance, e vice-versa, as ações tomadas pela classe dominante, por sua vez, têm enormes consequências na base material.

Só recorrendo ao método dialético, isto é, à análise do fenómeno social na sua evolução, reduzindo o externo e aparente aos seus elementos motrizes essenciais, ou seja, ao estado das forças produtivas e da luta de classes, poderemos aproximar-nos das perspetivas corretas e delinear as prioridades da nossa intervenção.

Qual é o fator determinante na situação política geral? Sem dúvida o medo da revolução e o enorme poder acumulado pela classe trabalhadora tanto nos países desenvolvidos como nos ex-coloniais, um poder que não tem precedentes em nenhuma outra etapa da história do capitalismo. E é esse medo que explica os apelos insistentes à unidade nacional, que continua a ser a estratégia central da burguesia. Lenin escreveu em A bancarrota da Segunda Internacional: "Nunca um governo precisa tanto do acordo entre todos os partidos das classes dominantes e da submissão 'pacífica' das classes oprimidas a este domínio como em tempos de guerra." E agora vivemos uma feroz guerra de classes.

Como é público e notório, a esquerda parlamentar, a velha e a nova, respondeu positivamente à interpelação da burguesia. Apesar disso, a estratégia de unidade nacional enfrenta obstáculos para a sua implementação. Não queremos dizer que não avance graças aos reformistas, mas o declínio geral do capitalismo e a crise da democracia burguesa, longe de diminuir, reforçam-se e, em última instância, minam o programa de unidade nacional a médio prazo.

Os exemplos do que dizemos são variados e em diferentes graus. Na América Latina, a burguesia e o imperialismo não param de colher fracassos. As recentes eleições na Bolívia, onde o MAS conseguiu mais uma vez a maioria absoluta contundente, é uma delas. Apesar da fuga de Evo Morales e da submissão da sua fação parlamentar, da selvagem repressão do Estado, das calúnias nos meios de comunicação, as massas deram um duro golpe na reação burguesa e no imperialismo.

No Chile, investiram enormes energias para interromper o levantamento revolucionário que começou em outubro de 2019. Graças à colaboração do PCC e da CUT, que aderiram “criticamente” à estratégia da Convenção Constituinte acordada por Piñera e o PS, o regime foi capaz de contornar o momento mais crítico. No entanto, a situação é tudo menos estável. A avassaladora vitória da aprovação no plebiscito de 25 de outubro mostra a enorme força do movimento, e como as manobras eleitorais podem atrasar, mas não impedir que continue a expressar-se.

O processo revolucionário pode reatar o fio com forças renovadas, impulsionado pela profunda crise social e económica que não dará tréguas. As aspirações e reivindicações das massas não poderão esperar que a chamada “convenção constitucional” cumpra as suas tarefas em 2022.

Estes exemplos sublinham uma das ideias que temos enfatizado nos últimos anos: a correlação de forças é tão favorável à classe trabalhadora, que o imperialismo e a classe dominante do continente fracassam uma e outra vez quando tentam recorrer a soluções golpistas, um facto que diferencia este período dos anos setenta e o êxito que tiveram ao estabelecer sangrentas ditaduras militares.

Claro que, não queremos dizer que a burguesia desistiu desta opção. Além disso, a tendência para medidas autoritárias para conter a viragem à esquerda e neutralizar o crescimento da luta de classes está a manifestar-se com força. Mas tem limites. O fator fundamental que permite à burguesia retomar uma e outra vez o controle dos acontecimentos não é a violência contra-revolucionária, mas a ausência de um partido marxista com influência de massas que apresente uma alternativa de poder.

EUA num ponto de inflexão

Trump foi derrotado nas eleições mais polarizadas e mais participadas da história dos Estados Unidos. Os resultados mostram que a maior potência capitalista do planeta sofre uma ferida política que não pára de sangrar. Trump resiste, sim, mas no final não tem conseguido conter o levantamento popular que incendiou o país de ponta a ponta denunciando a violência policial racista, nem a catástrofe sanitária, social e económica que atesta o fim do sonho americano.

Os resultados fornecem inúmeras chaves para a compreensão do presente e do futuro da luta de classes nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, a consolidação de uma base eleitoral maciça para o trumpismo e o que ele representa, o que inevitavelmente condicionará os eventos futuros e colocará forte pressão sobre o futuro governo democrata. Em segundo lugar, a prova de que existe uma maioria da população disposta a combater a reação populista da extrema-direita e das causas que a alimentam, e que transcende as eleições de 3 de novembro.

Biden pode alegar ser o candidato mais votado da história, mas a derrota de Trump foi alcançada apesar dele e de todo o establishment democrata. As lições destes anos não passaram em vão, e o avanço na consciência de milhões de oprimidos constitui um fator mobilizador de primeira ordem.

A causa fundamental da derrota do magnata nova-iorquino está na extraordinária mobilização que se multiplicou desde a sua posse. As marchas massivas das mulheres que receberam o seu mandato, as lutas dos jovens contra a legislação anti-imigração, as alterações climáticas ou o uso de armas e, sobretudo, uma rebelião social contra a violência racista e supremacista do aparelho policial que unificou em linhas de classe dezenas de milhões de trabalhadores brancos, afro-americanos, latinos e jovens de todas as comunidades, tiveram uma tradução clara nas urnas.

A irrupção das massas foi o que empurrou Trump para fora da presidência, e não a campanha medíocre de um candidato como Biden incapaz de minar a base social de seu adversário.

Mais de 16 milhões de estado-unidenses que não foram às urnas nas eleições de 2016 fizeram-no desta vez, situando a participação em cerca de 67% do recenseamento. A candidatura de Biden obteve 81.271.132 votos, 51,38% do total, e 306 votos eleitorais. Em relação ao resultado de 2016 (65.853.514) significa um aumento de mais de 23,4% e de mais de 15 milhões de votos. Trump obteve 74.209.298 votos, 46,91% do total e 232 votos eleitorais. Em relação a 2016 (62.984.828) sua votação aumentou 17,8 pontos e mais de 11 milhões.

O candidato do partido verde, Howie Hawkins, que foi apoiado por diferentes organizações da esquerda socialista, ficou com apenas 399.100 votos, 0,25%, 75% a menos do que obteve nas eleições de 2016 (1.457.218 ) e seu pior registo desde 2008.

Estes resultados devem ser vistos através do prisma da legislação eleitoral antidemocrática, que inclui um colégio eleitoral que decide a eleição do presidente (não o sufrágio universal direto), e que também pode suprimir os direitos de milhões de eleitores, como acontece em numerosos estados com a maioria das pessoas encarceradas e com uma parte considerável das ex-encarceradas.

Se assinalarmos o que mais se destaca da campanha, Trump não se cansou de insistir nos seus apelos mais incendiários contra o socialismo. Nunca as palavras socialista, extrema-esquerda, comunismo se haviam pronunciado tanto... por um presidente que aspirava à reeleição. Trump acusou Biden de ser igual a Castro e Chávez, usou em várias cidades o slogan “contra o socialismo, vota Trump”, convocou os seus seguidores a organizar a resistência armada contra a extrema-esquerda e, finalmente, contestou a contagem poucas horas depois de ter começado.

Nada disto é casual. Trump, como estas eleições confirmaram, não é um aventureiro sem perspetiva, num verso solto que age motivado por impulsos que requerem atenção profissional. O seu discurso reflete a decomposição da sociedade estado-unidense e o desespero de amplos setores da pequena burguesia que perderam as certezas do passado e são vítimas de um medo histérico de um futuro incerto. Estes setores, que tradicionalmente tiveram um peso social formidável, não renunciam a um modo de vida que lhes rendeu grandes privilégios e olham com horror para a escalada da luta de classes, o crescimento da esquerda e a influência das ideias do socialismo entre jovens e trabalhadores. Estas camadas declararam guerra ao estado atual das coisas e Trump deu-lhes uma bandeira pela qual lutar.

Neste magma social participam também setores atrasados ​​dos trabalhadores, desmobilizados e profundamente desmoralizados pela desindustrialização e pelo desemprego crónico, pelos baixos salários e pela perda de um estatuto que lhes dava uma estabilidade, que desapareceu para sempre. Absolutamente céticos em relação ao que o establishment democrata lhes oferece, mantiveram o seu apoio a Trump com a ilusão de que a situação económica iria melhorar.

Este bloco inflamado pelo desespero contrarrevolucionário e o ressentimento mostrou o seu punho. São realmente uma ameaça aos direitos democráticos, económicos e sociais dos trabalhadores, da juventude e de todos os oprimidos que sofrem com uma desigualdade dilacerante. Mas este bloco, que há quatro anos luta nas ruas, sai finalmente derrotado, apesar de um sistema eleitoral monopolizado pelos dois grandes partidos da classe dominante.

As massas que se levantaram contra Trump não tiveram outra opção para vencê-lo nas urnas do que recorrer à ferramenta disponível neste momento, e muito mais depois de Bernie Sanders, apoiado por milhões de pessoas nas primárias democratas, se ter retirado e capitulado perante o aparato do partido.

Sim, as massas em luta votaram em Biden com o nariz tapado para derrotar Trump, mas não depositaram a menor confiança nas suas políticas. A maioria sabia perfeitamente que o candidato democrata era parte do problema, não da solução.

É mais do que evidente que a campanha Biden não gerou qualquer ilusão. Ele foi um oponente medíocre que exibiu o seu servilismo às grandes corporações, recusando-se a incluir no seu programa qualquer uma das propostas que Bernie Sanders defendeu durante as primárias. Isto é o que explica o porquê de Trump ter conseguido manter o seu poder eleitoral intacto ou mesmo tê-lo fortalecido em alguns estados.

Elementos revolucionários

Segundo as sondagens, 97% dos eleitores de 2016 fizeram-no novamente quatro anos depois para o mesmo partido. A imprensa estado-unidense noticiou que 82% dos que votaram em Biden pensaram que “Trump provavelmente transformaria o seu país numa ditadura” e 90% dos eleitores de Trump que os democratas queriam transformá-lo “num país socialista”.

A extrema polarização nas urnas reflete muito mais do que um "simples" apoio a dois candidatos do sistema. Semelhante leitura, depois de tudo o que aconteceu nestes quatro anos, além de sectária, mascara a realidade: as massas não deixaram de procurar um caminho independente na sua ação.

As eleições são uma parte do conjunto de fatores que medem a temperatura do conflito entre as classes, e tendo em conta o caráter antidemocrático do tecido eleitoral dos Estados Unidos e a ausência de um partido dos trabalhadores, a verdadeira correlação de forças e o enorme potencial que existe para mudar a sociedade só pode refletir-se de uma forma muito distorcida.

Lenin colocou a questão da seguinte maneira: “Um marxista não tem dúvidas de que a revolução é impossível sem uma situação revolucionária; mas nem toda a situação revolucionária leva a uma revolução. Quais são, em termos gerais, os sintomas de uma situação revolucionária? Seguramente não cairemos em erro se apontarmos estes três sintomas principais: 1) A impossibilidade das classes dominantes manterem inalterada a sua dominação (...). Para que a revolução rebente, não basta que 'os de baixo não queiram', mas faz falta, além disto, que 'os de cima' não possam continuar a viver como até então. 2) Um agravamento, fora do comum, da miséria e do sofrimento das classes oprimidas. 3) Uma intensificação considerável, por estas razões, da atividade das massas, que em tempos de 'paz' deixam-se ser saqueadas tranquilamente, mas que em épocas turbulentos são empurradas, tanto por toda a situação de crise, como pelos de 'cima', para uma ação histórica independente”.

A luta de classes nos EUA tem apresentado características revolucionárias? A resposta é afirmativa. A catástrofe pela qual estão a passar grandes setores dos trabalhadores afro-americanos e brancos, e também da juventude das classes médias empobrecidas, explica a natureza da explosão social que vivemos. A revolta popular que eclodiu na esteira da morte de George Floyd, com tudo o que pode ter de espontâneo, tem fermentado ao longo de anos de desigualdade galopante, ataques aos direitos democráticos, brutalidade policial e racismo sistémico. O movimento foi unificado visando diretamente a oligarquia económica, o establishment político e o aparelho de Estado.

Este abismo social foi o combustível que inflamou a luta de classes e impulsionou a viragem à esquerda. A dinâmica acelerou-se há quatro anos, quando estourou a candidatura de Bernie Sanders e seu discurso por uma "revolução política" contra os 1% de Wall Street, e afirmou-se com a eleição de candidatos à esquerda do aparato democrata. O que é realmente surpreendente, e poucos o destacaram, é que, apesar da capitulação de Sanders, o movimento continuou a criar novos canais de expressão. O levantamento contra a violência policial racista é muito mais do que um fenómeno isolado. Representa aquela ação histórica independente das massas a que Lenin se referia.

Trump e o setor da burguesia que o apoia identificaram corretamente a essência dos acontecimentos e, por isso, desencadearam a sua hostilidade aberta contra os promotores de uma luta que empurra com força a consciência para as ideias socialistas. Perante a política da Casa Branca, o aparato do Partido Democrata tentou por todos os meios canalizar a rebelião para o campo eleitoral, esvaziando-o de conteúdo revolucionário e classista. Sobre estas bases lançou seu candidato Joe Biden, obtendo inclusive o apoio de Sanders para cercá-lo de uma credibilidade de que carece. Mas não enganaram milhões de trabalhadores e jovens, que sabem perfeitamente que o establishment democrata partilha do mesmo ponto de vista dos republicanos em questões fundamentais, seja na guerra comercial, no resgate de bancos e de Wall Street ou na sua inexistente política social. O seu voto não foi a favor de Biden, mas contra Trump.

Seria um erro fazer uma leitura mecânica e reducionista dos resultados eleitorais. É preciso lembrar que há apenas uns meses o presidente trancou-se no bunker da Casa Branca e ordenou que os manifestantes fossem baleados, decretando o recolher obrigatório. O que aconteceu então? Apesar da violência policial e do destacamento da Guarda Nacional, o movimento não desanimou, muito pelo contrário. Segundo estimativas publicadas pelo The New York Times, mais de 16 milhões participaram nas manifestações que sucederam sem interrupção em centenas de cidades desse gigantesco país. Não há nada igual na história recente!

Alguma vez a força deste movimento pode ser comparada aos protestos de rua da extrema-direita, dos proud boys e do resto dos grupos que Trump tem aplaudido implacavelmente? É claro que não queremos subestimar os perigos apresentados por estas organizações. Mas eles são muito mais fracos do que as massas em ação, especialmente se estas se baseiam no programa do socialismo revolucionário.

É precisamente esta ameaça, percebida por milhões de jovens, mulheres, imigrantes, afro-americanos, trabalhadores e trabalhadoras, o que explica, apesar de ser um candidato medíocre e estar completamente desligado das aspirações radicais que esta luta colocou em primeiro plano, que Biden tenha ganho a maior votação presidencial da história (e Trump, a maior de um candidato derrotado).

A grande distorção nos EUA é que não existe um partido independente da classe trabalhadora e este espaço foi historicamente mantido cativo pelos democratas. Embora seja um partido burguês, sempre cuidou das suas relações com a burocracia sindical e com o movimento comunitário e dos direitos civis, a fim de domesticá-los e assimilá-los à política de colaboração de classes. Dito isto, a dialética do processo de tomada de consciência e da organização dos trabalhadores não se esgota neste ponto.

A extraordinária erupção do movimento Black Lives Matter e da candidatura de Bernie Sanders, ou o crescimento dos Democratic Socialists of America (DSA) que se aproxima dos 70.000 aderentes, mostra que as condições para a criação deste partido operário amadureceram. A derrota de Trump, longe de impedir este processo, vai alimentá-lo.

O trumpismo

Como já apontamos, a polarização é um processo objetivo que se expressa em duas direções. A liderança do Partido Democrata estava confiante de que beneficiaria da inércia gerada pelas extraordinárias mobilizações contra o racismo e da terrível gestão que Trump fez da pandemia. Como aconteceu com Hillary Clinton há quatro anos, eles esperavam uma grande onda azul. Mas a campanha eleitoral de Biden, longe de prejudicar o candidato republicano, continuou a entregar-lhe apoios.

Trump resistiu em muitas das áreas deprimidas do famoso "Rust Belt" (cinturão da ferrugem) do Centro-Oeste, de composição maioritariamente obreira. É verdade que Biden recuperou o Michigan, Wisconsin e Pensilvânia por pouco, mas afasta-se das grandes maiorias democratas do passado e continua a ceder Ohio aos republicanos.

Alguns analistas apontam que Trump obteve os melhores resultados de um candidato republicano entre a população afro-americana, mas o crescimento deste apoio é limitado e seria um exagero considerá-lo um fenómeno de fundo. Os exemplos em contrário são esmagadoramente numerosos e relevantes, como a esmagadora maioria contra Trump em Clayton, o subúrbio afro-americano de Atlanta que foi fundamental para dar aos democratas a sua primeira vitória na Geórgia em 24 anos.

Especulou-se muito também sobre os votos latinos, mas as análises mais sérias mostram uma divisão entre as classes. Na Flórida, as pesquisas previam uma batalha acirrada entre os dois candidatos, mas a balança caiu decisivamente para Trump quando, no condado de Miami-Dade, a diferença de quase 30 pontos que Hillary Clinton alcançou em 2016 foi reduzida para Biden para pouco mais 7. Esse resultado foi a chave para os 29 votos do Colégio Eleitoral da Flórida irem para a conta de Trump. De acordo com a sondagem realizada pela NBC News, Trump ganhou a maioria dos votos cubanos, venezuelanos e colombianos em Miami após uma campanha centrada em denunciar Biden como socialista. Mesmo esse facto não pode esconder que os eleitores da Flórida aprovaram uma resolução para aumentar o salário mínimo para US $15 por hora.

O voto da mais humilde classe trabalhadora latina, empregada no trabalho doméstico, na hotelaria ou nas grandes explorações agrícolas, explica a reviravolta histórica no Arizona e o significativo retrocesso republicano no Texas, embora seja verdade que o candidato democrata perdeu algum terreno em alguns condados de maioria latina no Novo México e na Califórnia em relação às grandes diferenças que Clinton alcançou em 2016.

A conclusão, como apontam as sondagens à boca das urnas da Edison Research, é que a base eleitoral de Trump quase não mudou desde 2016. Obteve o seu maior apoio entre homens brancos, com mais de 65 anos, com altos rendimentos — mais de $100.000 dólares por ano —, em áreas rurais, que se declaram católicos, protestantes ou evangélicos. Este setor de classe média entendeu perfeitamente a sua mensagem durante a pandemia: a economia está acima da vida e da saúde dos trabalhadores. Por isso, embora o número de vítimas do coronavírus ultrapasse 240.000 e mais de 5 milhões estejam infetados, as fontes de rendimentos destes setores têm um peso decisivo no seu voto.

Milhões de pequeno-burgueses, e nos EUA são muitos, voltaram-se para a extrema-direita, apavorados com a mudança de época que vivem, porque sentem que seus privilégios estão ameaçados por uma mobilização social que alcança conquistas como o salário mínimo de $15 dólares a hora, constrói sindicatos e organizações sociais combativas contra a ideologia reacionária, sexista e racista que sempre prevaleceu entre os pequenos e médios proprietários. Trump consolida uma base firme entre estas camadas abastadas, chamadas aos comícios como se as suas vidas dependessem disso, e entre setores da classe trabalhadora branca no interior do país atingidos pela crise.

Apresentando-se ao mesmo tempo como uma garantia de sobrevivência diante da ameaça interna e externa, “contra a China, a América primeiro!”, mobilizou consideráveis ​​reservas sociais, mas não foi capaz de conter o declínio do capitalismo americano, trazer as fábricas para casa ou quebrar o poder tecnológico e produtivo da China. A sua demagogia é dirigida contra o establishment político ou a comunicação social, mas a oligarquia financeira enriqueceu muito mais sob o seu mandato.

A democracia burguesa na linha da mira

O candidato republicano jogou com o fogo ao agitar um discurso extremamente reacionário e conscientemente estimular a polarização. Mas não é mais que a expressão de um fenómeno objetivo, que reflete uma mudança política profunda. A burguesia americana está dividida sobre como proteger os seus interesses, sobre a melhor forma de garantir o seu domínio de classe. Agora que Biden triunfou, até mesmo entre os republicanos levantam-se as vozes que exigem respeito às instituições e o retorno a um entendimento que consiga "coser as feridas de um país dividido".

Trump continua a denunciar o caráter ilegítimo da contagem e promete recorrer aos tribunais para contestar o resultado. Mas não parece que o vá conseguir com as suas manobras. Mesmo setores que estiveram com ele nestes quatro anos alimentando todas as suas ocorrências e sustentando os seus excessos, como a rede de televisão Fox, rejeitaram as denúncias de fraude, embora seja evidente que a burguesia estado-unidense não despreza esse recurso como foi demonstrado nas eleições roubadas de Al Gore em 2000, quando os tribunais suspenderam a contagem na Flórida e deram a vitória a George W. Bush. Agora, o contexto é muito diferente. Se apoiarem Trump na sua denúncia e paralisarem o funcionamento do sistema eleitoral, a crise sofrida pela democracia burguesa nos EUA entraria numa fase de caos descontrolado. As massas não aceitariam tal coisa. As mobilizações desencadeadas após o assassinato de George Floyd poderiam empalidecer. O movimento voltaria à cena, não para louvar Biden, mas para confrontar Trump e tudo o que ele representa com extraordinária determinação. Seria a segunda volta às ruas que poucos desejam.

Do ponto de vista dos interesses de curto prazo da classe dominante, é preciso voltar à normalidade, alcançar estabilidade e "consenso" para enfrentar um período imprevisível, dadas as dimensões da crise mundial. Dentro do Partido Republicano, já surgiram personalidades acusando o medo de voltar a acordar um tsunami social. Quando três redes de televisão cortaram a transmissão do discurso do presidente ao vivo, fizeram-no seguindo instruções muito precisas. Questionar o sistema eleitoral, as instituições e a "democracia ao estilo americano" não favorece Wall Street!

A voz dos grandes capitalistas representados pelo aparato democrático tenta resistir à tempestade e acalmar os espíritos, enviando as mensagens mais conciliatórias: a nossa democracia é forte, as nossas instituições funcionam. O problema para eles é que o Partido Republicano fundiu-se com Trump, ou melhor, o trumpismo tornou-se a base social e eleitoral do Partido Republicano e, longe de entrar em declínio, demonstrou a sua consistência.

O futuro imediato, portanto, está complicado para a classe dominante. Todos os fatores que levaram a esta polarização extrema não só não desapareceram, como vão piorar. As divisões e tensões sociais não se vão dissipar porque expressam a profunda crise da forma capitalista de dominação que assola as principais potências mundiais, mas que também se estende a outras nações. A burguesia luta para manter o controlo da situação, quando os elementos nos quais ela confiou para fazê-lo pacificamente por muitas décadas são agora seriamente questionados e já não servem como antes. É o fruto da decomposição de um sistema doente e gangrenado.

Por um partido dos trabalhadores com um programa socialista

A legislatura para o candidato mais votado da história será muito mais parecida a um pesadelo do que a um mar de rosas.

Quando Barack Obama assumiu a presidência em 2008, no auge da crise financeira, havia uma enorme confiança nele. Naquela época, ele tinha superado o republicano John McCain em mais de 10 milhões de votos (69,5 milhões em comparação com 59,9 milhões), mas os seus oito anos na Casa Branca trouxeram uma tremenda frustração com o retrocesso das principais reformas que havia anunciado, especialmente as referentes à saúde pública universal e ao combate ao racismo sistémico. Nas eleições de 2012 ele foi reeleito, mas deixou pelo caminho cerca de 4 milhões de votos.

A administração Obama abriu o caminho para dois grandes eventos: a campanha impressionante de Bernie Sanders durante as primárias democratas em 2016 e sua "revolução política contra os 1% de Wall Street", e uma herança envenenada que levou a candidata Hillary Clinton a perder as eleições contra Trump.

As coisas agora são muito diferentes de 2008. A nova recessão global terá efeitos mais terríveis na economia dos EUA e agravará ainda mais a guerra com a China. A destruição dos serviços públicos nos Estados Unidos, a pobreza e a desigualdade são muito maiores do que há doze anos. Biden não tem nem a credibilidade nem a popularidade de Obama. Ele é um líder decrépito que foi colocado ao lado de uma figura como Kamala Harris, a fim de prepará-la para as eleições presidenciais de 2024 e continuar a acenar a cabeça à comunidade afro-americana. Ambos pretendem continuar com as políticas capitalistas evitando novos surtos e tentando coser as costuras sociais rasgadas, mas isso é mais do que improvável nas atuais circunstâncias.

Biden mudará substancialmente o estado atual das coisas? Claro que não. A pandemia covid-19, além de já custar mais mortes de americanos do que a Segunda Guerra Mundial e o Vietname juntos, deixou imagens insólitas para o país mais rico do mundo, como filas de fome ou enterros em trincheiras de parques públicos. Mas Biden olhou para o outro lado e criticou Trump com uma boca pequena por sua gestão de saúde, sem questionar as bases objetivas que desencadearam este massacre. Certamente o empobrecimento da classe trabalhadora e de amplos setores da classe média não começa com Trump, é um legado passado pelos governos democrata e republicano anteriores.

Biden continuará a ajudar os grandes monopólios, aprovando planos de "resgate" e a compra da dívida corporativa que seja necessária para sustentar os seus resultados, exatamente como fez Obama. E ele vai esquecer completamente os milhões que lhe deram a presidência. O futuro ocupante da Casa Branca deixou claro quais serão as suas prioridades: vai encorajar a guerra comercial com a China mexendo com o nacionalismo económico, como Trump, para desviar a atenção dos graves problemas internos que se acumulam. Não levará a cabo nenhuma purga ou subfinanciamento da polícia racista e não atingirá os multimilionários negócios privados da saúde, a menos que a luta de massas o force a fazê-lo. Tampouco terminará com uma dívida estudantil que supera 1,5 biliões de dólares, nem com a degradação da educação pública ou a falta de habitação digna e acessível. Quanto ao racismo, ele limitar-se-á a gestos inúteis, mas irá manter os trabalhadores e jovens afro-americanos nas mesmas condições de desigualdade.

Portanto, a questão que se põe em cima da mesa agora é como seguir em frente após a derrota de Trump. A viragem à esquerda de amplas camadas da sociedade americana está fora de discussão, mas a ausência de uma organização política da classe trabalhadora e da juventude é um obstáculo para que esse potencial transformador seja realizado numa alternativa anticapitalista de massas.

A experiência já mostrou que o Partido Democrata não foi e não será o instrumento de que necessitamos para esta batalha. É um instrumento da burguesia, está ao seu serviço e, portanto, não serve para vencer os cortes sociais, o racismo ou a violência policial. Pensar que trabalhando dentro do Partido Democrata é possível acumular as forças necessárias para construir um partido operário é uma utopia reacionária. As lições da candidatura de Bernie Sanders foram conclusivas sobre esse assunto. A questão é que, ao contrário de Sanders, que desperdiçou o enorme apoio que obteve ao recusar-se a construir uma organização independente, a esquerda organizada pode dar passos consistentes para unir milhões de trabalhadores e jovens. A tarefa não é fácil, mas derrotar Trump também não foi fácil.

Nesta estratégia é necessário abandonar o cretinismo parlamentar e compreender as limitações do campo eleitoral. Um partido de trabalhadores e jovens jamais desistirá de participar das eleições locais ou gerais, lutando para utilizá-las como plataforma de propaganda e organização. Mas não se trata de criar uma máquina eleitoral, mas de construir um partido de luta de classes, enraizado nos bairros, nas empresas, nas fábricas e nos centros de estudos, no movimento operário e sindical, nas mobilizações de bairros e comunidades, nas organizações anti-racistas, no movimento feminista..., e fazê-lo defendendo um programa de classe, socialista e internacionalista para dar resposta, e também vitórias, às aspirações de milhões.

Tal alternativa poderia arrancar do discurso demagógico de Trump setores das camadas médias e da classe trabalhadora que hoje se encontram na trincheira errada por puro desespero e porque ninguém lhes oferece uma maneira de resolver os seus problemas urgentes. As condições para percorrer este caminho são evidentes graças à luta destes anos. O movimento de apoio a Bernie Sanders deixou claro que tal alternativa era perfeitamente possível, e o mesmo é evidenciado pelo crescimento da militância e da influência da DSA.

Os conselheiros de Biden já proclamam abertamente uma nova era de "unidade nacional" e terão um eco poderoso na comunicação social, incluindo seções do republicanismo mais tradicional. Mas a dura realidade da crise deixará evidente este engodo e continuará a mexer com a consciência de milhões, que avançarão ainda mais nas suas conclusões políticas.

Nada é automático na luta de classes. Os EUA entraram num período turbulento e a tarefa das correntes e organizações que se reclamam da esquerda revolucionária não é lamentar as oportunidades perdidas, nem adotar mensagens sectárias e abordagens que as distanciam dos ativistas. É necessário estabelecer uma linguagem comum com os milhões que se mobilizaram nas ruas e nas urnas, para aumentar a sua compreensão sobre as tarefas do momento e a necessidade de forjar uma organização marxista revolucionária.

Tudo o que acontece na primeira potência mundial tem consequências imediatas no resto do mundo. A derrota de Trump manda notícias muito más para Bolsonaro no Brasil, para Salvini na Itália, para Johnson na Grã-Bretanha, para a Alternativa para a Alemanha [AfD] ou para a extrema-direita do Vox. Mas a ameaça do trumpismo ainda está viva e pode reaparecer com ainda mais força no futuro, à medida que se alimenta da crise orgânica do capitalismo.

A tarefa mais importante de nossa classe neste período é prepararmo-nos para esta batalha, e isso envolve construir a alternativa revolucionária que os oprimidos nos EUA e em todo o mundo necessitam para vencer.

A luta pela hegemonia mundial

A profundidade da recessão foi sustentada por decisões e contradições que surgiram muito antes da pandemia. Refletindo essa dinâmica, as Relações Internacionais (RI), como as conhecíamos há trinta anos (após o colapso do stalinismo), foram pelos ares. Os blocos estáveis ​​foram desfeitos e novas alianças estão a ser tecidas. A guerra no Afeganistão resultou numa derrota humilhante para o imperialismo dos EUA, que teve de forjar um acordo precário com os talibãs. O mesmo pode ser dito do Iraque, que no ano passado foi palco de um formidável movimento em Bagdad e outras grandes cidades contra o governo e os seus mentores iranianos, duramente reprimido, mas que trouxe questões sociais e de classe para o primeiro plano.

O avanço do Irão como potência regional, após a derrota do Estado Islâmico na Síria, também não pode esconder que o regime dos mulás se sustenta sobre um barril de pólvora. As grandes lutas operárias destes últimos meses dão a medida da fúria e enorme descontentamento contra a oligarquia reacionária que governa o país como uma ditadura teocrática, e a recessão pode aumentá-las extraordinariamente. Os mulás são questionados noutros cenários, como no Líbano, onde a revolução derrubou sucessivos presidentes e governos, minou a influência de Amal e do Hezbollah (aliados do Irão). Algo semelhante aconteceu no Sudão, embora o processo revolucionário tenha sido desviado pela estratégia da oposição, que capitulou perante a junta militar para chegar a um acordo sobre uma “transição democrática”.

As mesmas razões explicam a profunda crise política em Israel, onde a burguesia sionista perdeu muito terreno para mobilizar a população em torno dos seus objetivos expansionistas e militaristas, e uma nova geração de trabalhadores e jovens ocupa as ruas desafiando as políticas da elite dominante. A crise governamental, que três eleições consecutivas não conseguiram resolver, mostra a instabilidade que se instalou na sociedade israelense, sem precedentes nos últimos trinta anos. O acordo entre a Casa Branca e Netanyahu para o estabelecimento de relações entre Israel e os Emirados Árabes Unidos visa fortalecer o bloco imperialista na região, gravemente danificado diante das bem-sucedidas incursões do Irão, Turquia, China e Rússia.

O choque da luta de classes não se limita a estas áreas. A Ásia também entrou numa nova fase de instabilidade: a greve geral na Indonésia ou as grandes mobilizações de jovens e trabalhadores que atingiram a Tailândia são uma rutura com o período anterior, marcado pelo forte crescimento das suas economias, hoje confrontadas com uma crise muito dura.

É evidente que o fracasso do fundamentalismo islâmico deu lugar a formas de luta muito mais classistas. Certamente, a ausência do fator subjetivo está por trás de todas as distorções e perversões que os processos revolucionários adotam no mundo ex-colonial. Mas a questão a ressaltar é para onde apontam as tendências fundamentais, e é inegável que o espaço para a esquerda revolucionária e o programa marxista é o mais propício das últimas décadas.

As tensões interimperialistas aumentaram em todas as áreas de importância estratégica. Na Turquia, Erdogan está em sérias dificuldades. Confrontado com o aumento da luta de classes e uma recessão alarmante, tenta exacerbar o grande chauvinismo turco através de todos os tipos de manobras militares no estrangeiro e do aumento da repressão interna. O caráter bonapartista de seu regime foi acentuado ao extremo. O seu relativo sucesso na Síria, onde controla parte da sua franja norte e luta contra milícias curdas, ou contra a UE, da qual ganhou milhares de milhões de euros pelo seu papel como guarda da fronteira contra os refugiados, levou-o a sobrevalorizar as suas forças.

No Mediterrâneo, está a enfrentar a Grécia por causa das reservas de gás e petróleo. Também alimentou a guerra no Cáucaso entre o exército do Azerbaijão contra a Armênia e a República de Artsakh para a região do Alto Karabakh. Um movimento para aumentar a sua influência na região (por meio do controle do Azerbaijão) e enfraquecer a influência russa (que apoia a Arménia), mas não alcançou os resultados esperados. Se citarmos o caso da Turquia, é porque ele ilustra muito bem a nova fase de balcanização e reviravoltas que abalam as RI do século XXI.

Os realinhamentos e ruturas entre os grandes blocos tornaram-se comuns, como expressão da grave recessão económica, do declínio do imperialismo estado-unidense e europeu e da extrema polarização social e política que permeia o mundo.

A saída do Reino Unido da UE é uma consequência desse processo geral, e as tentativas desesperadas da Alemanha de manter a Europa unida sob a sua liderança, mais do mesmo. A burguesia alemã não pode competir no mercado mundial se não se defender com a barreira tarifária que a UE representa contra os EUA e a China. Mas o futuro da unidade europeia nas bases atuais não está garantido e está condicionado pela grande batalha que os dois colossos estão atualmente a travar.

Em vários materiais, explicamos que o nacionalismo económico de Trump e a guerra tarifária contra a China não surgem do nada. São o fruto maduro do desespero da burguesia americana. Mas, como os factos demonstram, estas receitas não resolverão nada e piorarão ainda mais a situação da economia estado-unidense.

O capitalismo criou uma divisão internacional do trabalho e um mercado mundial do qual nenhuma economia nacional se pode isolar. A autarquia e o nacionalismo económico constituem um sonho reacionário, como ficou claro na década de 1930. Por trás deste esconde-se o mais agressivo dos imperialismos.

A guerra económica irrompe pelas insuportáveis ​​contradições do capitalismo na sua etapa de decadência senil e, ao aprofundar-se, aumentará os custos de produção nos EUA, China e Europa, com forte impacto em mercados absolutamente interdependentes. Aconteceu depois do crash de 1929 e já está a acontecer agora em escala ampliada. Basta relatar alguns dados: 77% do que os EUA importam da China correspondem a produtos semi-manufacturados usados ​​na produção de bens nas indústrias americanas. E o mesmo acontece com a China, que produz 75% dos smartphones mundiais e 90% dos computadores, mas onde 87% dos produtos eletrónicos e 60% das máquinas são fabricados por empresas de capital estrangeiro, muitas delas dos EUA. A internacionalização das cadeias produtivas não é um capricho, corresponde à tendência inata das forças produtivas de superar a camisa de força do Estado nacional e são fonte essencial do lucro das grandes corporações.

Quando Trump convoca as empresas estado-unidenses a repatriarem as suas instalações na China choca com a dinâmica objetiva do capitalismo. As multinacionais estado-unidenses não acumularam lucros estratosféricos com a deslocalização industrial para a China durante as décadas de 1990 e 2000? Cumprir os desejos de Trump significaria um grande dispêndio de capital fixo e um aumento nos custos de produção e salários. Mas elas têm que fazer algo, e de facto estão a fazer: saquear os recursos públicos dos EUA, cortar gastos sociais até nada restar, especular como nunca antes no mercado de ações e reduzir brutalmente os salários da classe trabalhadora estado-unidense para melhorar a competitividade.

Muitos comentaristas estão falando sobre uma nova "Guerra Fria". Mas a comparação não é correta. Há uma diferença radical em relação à Guerra Fria da segunda metade do século 20: a ex-URSS nunca foi a potência económica que a China é, e as duas maiores economias do mundo não estavam tão interconectadas financeiramente e produtivamente como agora.

A verdade é que as medidas de Trump falharam. A sua política tarifária não significou redução do défice com a China, que voltou a crescer de 28,4$ mil milhões em junho de 2020 para 31,6$ mil milhões em julho, acumulando 163,3$ mil milhões nos primeiros sete meses do ano. Como assinalava um relatório da Reserva Federal de Nova York, foram as empresas estado-unidenses que “arcaram com praticamente todos os custos” dessas novas tarifas, o que reduziu os lucros e os investimentos.

Nenhum governo dos Estados Unidos impediu o fortalecimento da força económica da China. Na realidade, a burguesia estado-unidense contribuiu mais do que ninguém para o seu desenvolvimento e agora paga as consequências. A China já é a segunda maior economia do mundo com um PIB (em dólares correntes) de mais de 14 biliões (17,9% do PIB mundial), de acordo com estimativas do JP Morgan. Superou a zona do euro, 13,4 biliões (17,1% do PIB mundial), que permanece na terceira posição, e fecha a lacuna com os EUA, com um PIB de 21,3 biliões de dólares (27,3% do PIB mundo). A China já se posicionava em 2018 como a principal potência exportadora com 12,8% da quota global, seguida pelos EUA (8,5%) e Alemanha (8%). Também se consolidou como o segundo maior recetor de Investimento Estrangeiro Direto, cerca de 10% em todo o mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

O caráter especial do capitalismo de Estado chinês e seu regime político, uma ditadura bonapartista, permitiu-lhe enfrentar os efeitos da Grande Recessão muito melhor do que os seus principais rivais. Apoiando-se no peso de sua indústria estatal e de uma banca em grande parte também controlada pelo Estado, e graças às suas enormes reservas económicas e a décadas de superavit comercial, tem conseguido uma centralização e alocação de recursos mais eficiente do que qualquer outro grande poder. Mas estas vantagens competitivas, evidenciadas pela sua capacidade de reação à pandemia, não impedem a China de continuar sujeita às leis e contradições do mercado mundial e à crise de superprodução.

Tampouco é um assunto de menor importância que o regime chinês, graças ao avanço das forças produtivas das últimas três décadas, à crescente urbanização do território, ao surgimento de uma nova classe média e à possibilidade de assimilar uma enorme quantidade de mão de obra dos campos nas grandes fábricas, tenha sido capaz de manter uma base de apoio bastante estável. Mas esta situação também pode mudar dependendo da evolução da depressão económica global.

A China tornou-se numa nova superpotência que ameaça a supremacia estado-unidense em todas as áreas. É um fenómeno que apresenta semelhanças com o avanço dos Estados Unidos no último quartel do século XIX e o primeiro do século XX com relação à Inglaterra. Nesses cinquenta anos, a economia americana avançou a todo o vapor e sua expansão imperialista consolidou-se definitivamente, acabando com a hegemonia britânica. Agora, o processo está a ser inclusivamente mais acelerado.

De acordo com a última pesquisa da revista Fortune, a China tinha 89 empresas entre as 500 maiores empresas do mundo em 2013, enquanto em 2019 eram 119. Os EUA foram rebaixados para a segunda posição com 99, embora seja verdade que tenham 22 entre as As 50 maiores (a China tem apenas duas, Huawei em 5ª posição e Alibaba em 28ª), e essas quase 100 empresas somaram 8,7 biliões de dólares em comparação com 7,9 biliões das chinesas.

Em todo caso, o que se deve estimar é a progressão do capitalismo chinês em apenas três décadas. Segundo dados da Comissão Europeia, em 2019 a China era o principal utilizador mundial de patentes, sendo o segundo país com mais empresas a investir em I&D (507) depois dos EUA (769), embora em termos de capital realizado seja o terceiro, atrás do Japão e dos EUA. A velocidade do avanço da estrutura empresarial chinesa, e de sua liderança tecnológica, preocupa e com razão os imperialistas estado-unidenses e europeus. Em 2019, a Huawei passou a Apple do segundo para o terceiro lugar no mundo em vendas de telemóveis, alcançando 16% da quota de mercado contra 13% da Apple. Hoje, 5 das 10 maiores empresas de Internet e telefonia são chinesas, enquanto em 2009 todas eram estado-unidenses.

O imperialismo chinês não apenas desafia abertamente os EUA, na Europa está a tentar estabelecer uma ponte através da Sérvia, Grécia e Itália, onde o capital chinês está a fazer aquisições de empresas estratégicas. A UE está a alertar sobre estes movimentos e a tentando restringi-los com proibições legais e novas tarifas.

Na América Latina a penetração atinge dimensões sem precedentes, e a sua influência política faz-se sentir ao frustrar algumas das manobras mais notórias do imperialismo estado-unidense, como é o caso da Venezuela (numa década emprestou ao governo de Maduro cerca de 60 mil milhões de euros). Há alguns meses, a China também assinou um acordo com o Irão para investir 400 mil milhões de dólares em energia e infraestrutura nos próximos 25 anos. Também conquistou a África: é o primeiro investidor em volume de capital, cerca de 72 mil milhões de dólares entre 2014 e 2018, o maior credor com números que podem rondar os 145 mil milhões de dólares, e o primeiro parceiro comercial.

É claro que os EUA ainda mantêm a liderança em áreas cruciais, como o mercado de divisas: o dólar estado-unidense participa de 88% de todo o comércio mundial. Possui também as bolsas de valores que concentram o maior volume de negócios: a Bolsa de Valores de Nova York tinha uma capitalização de 23 biliões de dólares no final de 2019 e a Nasdaq de 11 biliões. São seguidas pelo mercado de ações de Tóquio com 5,7 biliões e Londres com 5 biliões. Mas, se considerarmos os mercados de ações chineses, Hong Kong, Xangai e Shenzhen juntos, sua capitalização total é de cerca de 10,5 biliões. Como noutros registros, o avanço é rápido e sustentado.

Os dados da expansão imperialista da China enchem as revistas especializadas e também a imprensa popular. O que se viu nesta pandemia aumentou o prestígio e a influência da China não apenas entre os círculos dirigentes de muitos países, mas também entre a população. É por isso que a resposta da classe dominante dos EUA não pode esperar, e neste assunto há uma clara unidade de opinião.

A escalada de confrontos entre os EUA e o gigante asiático não parou de aumentar. O levantamento popular de Hong Kong foi um deles. O facto de a oposição "democrática", liderada por elementos pró-ocidentais, ter conseguido sustentar a luta nas ruas durante um ano, muitas vezes esmagada pela iniciativa da juventude, não conseguiu abalar o regime de Xi Jinping, que mantém no essencial a sua agenda para Hong Kong.

Soma-se a este confronto o conflito no Mar do Sul da China, onde Washington considera ilegais as reivindicações de soberania de Pequim, o que resultou em vários confrontos com as frotas do Vietname e das Filipinas. Também são relevantes os conflitos da China com a Índia e a Austrália, dois aliados prioritários dos Estados Unidos na área que estão a perder. A China investiu cerca de 60 mil milhões de dólares em infraestrutura paquistanesa como parte do chamado corredor económico China-Paquistão, que por sua vez faz parte da nova Rota da Seda. A velha aliança dos Estados Unidos com o Paquistão está seriamente danificada e Trump voltou-se para o governo Modi na Índia para tentar manter a sua influência no continente.

A burguesia estado-unidense também vê com grande preocupação o avanço do poderio militar do gigante asiático. Os gastos chineses com armas equivalem a pelo menos 14% do total mundial, 261 mil milhões de dólares por ano (o dos EUA é muito maior no momento, 732 mil milhões). O que há a notar é que os aliados dos EUA percebem a seriedade desta escalada e estão a agir. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, anunciou gastos militares de 186 mil milhões na próxima década, um aumento de 40%.

Mas essas tensões não têm sido um obstáculo para que os 10 países do Sudeste Asiático que compõem a ASEAN — a aliança contra o comunismo promovida na década de 1960 pelos EUA — juntamente com o Japão, a Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia se tenham juntado à China na recém-formada Regional Comprehensive Economic Association (RCEP). Esta organização originou a maior área de livre comércio do mundo, abrangendo pouco mais de 30% da população mundial e 29% do PIB mundial. Este acordo é, sem dúvida, um sucesso político para o governo chinês, que consegue lançar as bases não só para uma redução progressiva da influência dos Estados Unidos na área, mas também para abrir um caminho para um acordo com Chile e Peru, dois firmes aliados dos EUA no enfraquecido Trans-Pacific Partnership Agreement (TTP) promovido por Obama e paralisado por Trump.

Quando observamos a dinâmica do confronto interimperialista e as mudanças repentinas nas relações internacionais, podemos estabelecer uma comparação histórica com o mundo entre guerras do século XX. Um período de revolução e contra-revolução em que a classe trabalhadora se moveu energicamente para tomar o poder, mas foi cruelmente traída pelos aparatos social-democratas e estalinistas. Esse fracasso permitiu o triunfo do fascismo e finalmente abriu as portas para uma guerra imperialista devastadora. Conforme analisamos, a perspetiva de um conflito militar dessas dimensões está descartada a curto prazo, mas algumas das manifestações políticas mais radicais e ameaçadoras daquele período estão emergindo com toda a força. A tarefa para a qual nos preparamos tem, portanto, o mesmo significado histórico e não pode ser adiada.

Notas

1. www.imf.org/es/Publications/WEO/Issues/2020/09/30/world-economic-outlook-october-2020.

2. Para citar um exemplo representativo, só na indústria automóvel europeia esperam-se 100.000 despedimentos em 2021 (previsão da Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis).

3. Segundo a revista Forbes, nos EUA há 607 plutocratas com uma fortuna pessoal superior aos mil milhões de dólares (925 milhões de euros), e a crise actual robustece-as. Estes valores são apresentados no último relatório do Instituto de Estudos Políticos, com sede em Washington DC: só nas três semanas que vão de 18 de março a 10 de abril, estes bilionários aumentaram a sua riqueza em 282.200 milhões de dólares (261.000 milhões de euros); no mesmo período 22 milhões de estado-unidenses inscreveram-se nos centros de desemprego.

4. Segundo dados fornecidos pelo Banco de Compensações Internacionais na Basileia, em 2018 o valor total de derivados financeiros fora do mercado da bolsa chegava aos 544 biliões de dólares, uma quantidade equivalente a 640% do PIB mundial desse ano. Em 2019 os bancos estado-unidenses possuíam 157 biliões de dólares em derivados, isto é, o dobro do PIB mundial e 12% mais do que acumulavam em 2008 e, entre estes, os grande quatro (JP Morgan, Bank of America, Citigroup e Wells Fargo), acumulavam 50% de todos os títulos do Tesouro que tem a banca estado-unidense. A chamada banca sombra — a rede financeira constituída por transações bilaterais, opacas e interdependentes, fora do sistema bancário regulado — experienciou um crescimento espetacular. Segundo o último relatório do Conselho de Estabilidade Financeira, em 2017 esta banca movia 51,57 biliões de dólares, 57,3% mais do que há 10 anos. Só na UE, o sector dos bancos sombra representam 40% da actividade financeira segundo dados do Conselho Europeu de Risco Sistémico.

5. Recentemente houve a fusão bancária mais importante desde 2008, entre a BB&T (BBT) e a SunTrust(STI), que dará lugar à sexta maior entidade financeira dos EUA. Os seis grandes bancos e entidades financeiras serão responsáveis ​​por mais de 65% de todos os ativos e depósitos nos Estados Unidos. Também houve a fusão entre Charles Schwab e TD Ameritrade, o primeiro e o terceiro maiores empresas de brokers bancários e da bolsa dos Estados Unidos, dando origem a uma gigantesca entidade que terá 24 milhões de contas de clientes em todo o planeta, cinco biliões de dólares em ativos e gerará receitas anuais que ficarão em torno dos 17 milhões de dólares. Gestores de fundos de investimento como a BlackRock, atualmente a maior do mundo, administram capital de 6,3 biliões de dólares, o equivalente ao PIB combinado da Alemanha e da França. Um estudo do McKinsey Global Institute, aponta que 80% de todos os lucros empresariais obtidos no mundo são gerados por 10% dos grupos cotados na bolsa. Três corporações, BlackRock, Vanguard e State Street, já são os maiores acionistas de 40% de todas as empresas estado-unidenses e 88% das 500 maiores empresas do país. Aqui está a ditadura do capital financeiro, cujo poder empalidece em relação com o que descrevia Lenin em 1916.

6. De acordo com o relatório, 4 multinacionais controlam 84% do mercado de pesticidas, 10, 56% do mercado de fertilizantes, outras 10, 83% do mercado farmacêutico para pecuária e apenas 3 empresas 60% do mercado de sementes. No setor de mineração, 5 multinacionais monopolizam 91%, 88% e 62% da produção mundial de platina, paládio e cobalto, e 10 multinacionais monopolizam 64%, 52%, 50% e 45% da produção de níquel, ferro, cobre e zinco respectivamente, bem como 34% e 30% de prata e ouro. 72% das reservas de petróleo e 51% das reservas de gás estão nas mãos de 10 empresas multinacionais, enquanto outras tantas produzem 30% do cimento mundial. Também há 10 que monopolizam 25% da produção mundial de papel e papelão, e 13 que concentram entre 11% e 16% da pesca mundial e entre 20% e 40% das reservas pesqueiras. Cinco multinacionais controlam 90% do comércio mundial de óleo de palma, outras 3 60% da produção de cacau, 10, 40% da produção de café, 8, 54% da produção de soja, 3, 42% da produção de banana e 5, 48% da produção de salmão.

7. Lenin, Imperialismo, fase superior do capitalismo.

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