Derrotar o capitalismo é impossível sem uma organização revolucionária. Entre os detractores desta posição distinguem-se pelo menos dois grupos: o daqueles que acreditam que o partido revolucionário, organizado nos moldes de Lenin, está ultrapassado; e o daqueles que identificam o leninismo com o estalinismo ou o “capitalismo de Estado” e, portanto, se opõem às organizações revolucionárias como embriões de “totalitarismo”. Neste artigo fazemos uma crítica do primeiro grupo, aquele que, reconhecendo a utilidade da teoria leninista do partido para o início do séc. XX, a declara inútil no séc. XXI. Um segundo artigo tratará do segundo grupo.

O nosso período histórico

É necessário desde logo afastar o principal dos falsos argumentos lançados contra as organizações revolucionárias marxistas: o argumento do tempo.

Toda a teoria social é um produto histórico e, como tal, será ultrapassada. Reconhecer isto é, na verdade, concordar com o marxismo. Trata-se, então, de determinar se o momento actual difere qualitativamente das restantes fases de desenvolvimento do capitalismo, e se essa diferença exige uma nova teoria do partido. Declarar pura e simplesmente que passou um século desde a Revolução Russa, como repete ad nauseam a mais moderna esquerda, é um subterfúgio.

Caracterizemos, então, o nosso período histórico. Cremos estar longe de polémicas de maior se afirmarmos que este período é, fundamentalmente, marcado por três acontecimentos.

O primeiro é a crise capitalista que fecha o período que nos precedeu, o do pós-guerra. Esta crise rebenta em 1973, e com ela a burguesia entra numa desesperada tentativa de repôr as taxas de lucro do período anterior. O neoliberalismo e a financeirização da economia, sobretudo nos países imperialistas, não é senão a solução burguesa para a crise do modo de produção. Infames governos como o de Thatcher, no Reino Unido, ou Reagan, nos EUA, atacaram brutalmente as organizações de trabalhadores e entregaram ao capital tanta propriedade estatal quanto foi possível.

O segundo é a derrocada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e de quase todo o chamado Bloco Socialista. A derrota histórica do estalinismo arrastou-se pela década de 1980 do século passado, com o atrofio económico e a dependência externa a que as burocracias dos Partidos Comunistas entregaram os Estados operários. A restauração capitalista — um desfecho que Trotsky previra como única possibilidade histórica no caso da manutenção das burocracias no poder de Estado — deu-se completamente em 1991. Todas as tentativas de revolução política nos Estados operários burocraticamente degenerados tinham falhado. A Rússia, o maior e mais desenvolvido país do “Bloco”, passou pela completa e violenta destruição de qualquer vestígio, por mais pequeno que fosse, da economia planificada. Os estalinistas russos revelaram-se excelentes aprendizes de neoliberalismo.

O terceiro é um processo que subjaz aos dois eventos anteriores, uma reorganização da divisão internacional do trabalho, com uma nova fase de exportação de capital imperialista para países neocoloniais. A este processo não pode ser atribuída uma data tão circunscrita como um ano, mas será suficiente dizer que ele se desenrola como corolário do crescimento pós-guerra, e toma forma precisamente durante esse período. Toda a indústria que requeria um trabalho menos especializado foi sistematicamente empurrada para o mundo neocolonial, onde a força de trabalho era mais barata, muito menos organizada e por isso muito mais facilmente reprimida pelos Estados. Na Europa e nos EUA, a economia tornou-se crescentemente — nos termos dos economistas burgueses — uma “economia de serviços”, o que significou uma maior fragmentação da classe trabalhadora, com o crescimento veloz de um sector onde os trabalhadores estavam ainda completamente desorganizados.

Estes três acontecimentos inauguraram o nosso período histórico. As direcções social-democratas da classe trabalhadora, educadas na escola de Attlee[1] e da conciliação de classes, não estavam preparadas para esta transformação. Toda a teoria que apoiava as suas políticas dependia do crescimento económico — do aumento da taxa de lucro —, assentava numa pretensa crítica keynesiana de Marx e declarava este último ultrapassado, especialmente na sua teoria das crises. Vendo o consenso do pós-guerra dar lugar ao consenso de Washington, a social-democracia não teve resposta. Nenhum acordo de cavalheiros era possível, nenhuma concessão era aceite pelo capital. A burguesia mudou a sua táctica, abdicando da paz social para salvar a taxa de lucro. Sector a sector, sindicato a sindicato, todas e cada uma das organizações operárias que ousaram resistir foram atacadas frontalmente, e esmagadas.

O que restava do mundo colonial, após todas as vidas sacrificadas pela sua libertação do colonialismo, não passou senão a mundo neocolonial. Os draconianos programas do FMI asfixiaram as economias nascentes com o laço da dívida externa. Os trabalhadores dos países independentes em África juntam-se aos seus irmãos latino-americanos na condição de total dependência económica sob um verniz de independência política. Mesmo a República Popular da China abriu as portas ao capital imperialista, com uma metamorfose do Partido Comunista Chinês que consiste numa restauração capitalista a passo de caracol.

O capitalismo emergiu do séc. XX alegando ser não só o vencedor sobre o socialismo, mas também o derradeiro modo de produção. A partir dos EUA, Fukuyama, uma das mais claras vozes do capital, declarou o “fim da História”. Mundialmente, as organizações de trabalhadores diminuíram significativamente em número e capacidade reivindicativa. As direcções burocráticas e oportunistas das organizações de trabalhadores despiram a sua capa social-democrata e entregaram-se ao social-liberalismo. Com as bases enfraquecidas e desmoralizadas, as direcções dos tradicionais partidos reformistas — representados em Portugal pelo Partido Socialista — assumiram abertamente o seu carácter burguês. O exemplo mais ilustrativo é o do Labour Party (Partido Trabalhista). O partido de Clement Attlee no período pós-guerra tornou-se o partido de Tony Blair no período pós-crise. Labour deu lugar a “New” Labour, com uma revisão dos estatutos a neutralizar a influência dos sindicatos sobre o partido e a codificar o abandono de qualquer pretensão ao socialismo.

Os estalinistas, onde as suas organizações sobreviveram, não puderam tampouco sair ilesos. Após a completa consolidação de poder da burocracia na URSS — marcada pelo 7º Congresso da Comintern (Terceira Internacional) —, a única função que os partidos “comunistas” desempenharam durante todo o século foi a de satélite do Kremlin. Defenderam os interesses da burocracia russa como embaixadores e negociadores perante as burguesias dos seus respectivos países, organizando as derrotas de todas as revoluções que conseguiram dirigir — a Revolução Espanhola é o mais flagrante exemplo, mas o séc. XX está pejado de semelhantes derrotas organizadas pelo estalinismo. Órfãos depois de 1991, os partidos estalinistas apressaram-se a ocupar o lugar que a social-democracia vagara. Tal como a original social-democracia, esta versão contrafeita serve essencialmente para fazer funcionar aparelhos partidários dirigidos por castas parasitárias de oportunistas que, colocados entre os patrões e os trabalhadores, se arvoram intermediários da luta de classes.

A nova social-democracia difere fundamentalmente da sua sucessora em dois aspectos, contudo. Primeiro, por não se apoiar verdadeiramente num vasto movimento operário — que recuou drasticamente — mas, acima de tudo, no funcionalismo público e em sectores altamente especializados e qualificados do proletariado. Em segundo lugar, por, tragicamente, operar num período de putrefacção do capitalismo que limita brutalmente as possibilidades de negociação com a burguesia. Não é espantoso que os sindicatos, sob as direcções da pseudo-social-democracia, se tenham tornado autênticos prestadores de serviços, substituindo a lógica combativa e solidária do sindicalismo de classe pelo assistencialismo e pela “ajuda jurídica”.

A tentativa de substituição da social-democracia, no entanto, não foi totalmente bem sucedida. A queda da URSS significou uma profunda descredibilização dos partidos estalinistas entre os trabalhadores, e o assento onde anteriormente repousara o traseiro da social-democracia europeia não conseguiu ser completamente tomado pelo frágil e raquítico corpo das burocracias vermelhas pós-URSS. Entre as lamúrias e as pragas dos estalinistas, surgiram, o mais das vezes a partir de correntes minoritárias que outrora se reclamavam maoístas ou trotskistas, novos partidos de esquerda.

Entre as principais características destas novas formações políticas encontramos a volatilidade programática e estrutural — quando não uma quase ausência de estrutura — com a decorrente ausência de democracia interna. São partidos sem ligações sindicais ou a quaisquer organizações de trabalhadores, mas que criam e dissolvem dezenas de “movimentos sociais” no espaço de poucos anos. São, por isso mesmo, também caracterizados pelo parlamentarismo e pelo abandono ou rebaixamento de toda a experiência histórica do movimento operário. Não surpreendentemente, rejeitam uma abordagem de classe e procuram obstinadamente um apoio transclassista que nunca alcançam. Nada disto é impressionante se, por fim, tivermos em conta uma característica fundamental: a composição de classe das direcções destes partidos. As suas direcções são esmagadoramente pequeno-burguesas — com forte presença de académicos. Assim se explica a sua altíssima sensibilidade e atenção à última estirpe de liberalismo regurgitada pela cátedra.

Em suma, a combinação da resposta neoliberal à crise estrutural do capitalismo após uma fase de crescimento pós-guerra, a queda da URSS (assim como das restantes economias planificadas) e a reorganização da divisão internacional do trabalho com uma gigantesca exportação de capital industrial para o mundo neocolonial resultaram num recuo sem precedentes do movimento operário internacional, na viragem dos partidos social-democratas à direita, na substituição destes por decadentes organizações estalinistas e no surgimento de novas formações de esquerda que ocuparam o vácuo político restante.

As tarefas da organização revolucionária

Segundo Lenin e Trotsky, o partido marxista revolucionário serve propósitos históricos bem determinados. É, no advento de uma situação revolucionária, a única organização capaz de armar a classe trabalhadora com um programa socialista claro para a tomada do poder, sem o qual ela será esmagada pela reacção burguesa. E uma situação revolucionária, como é sabido, depende de uma crise económica — ainda que não seja mecanicamente provocada por ela.

Ora, se algo está bem assente depois de 1973 e das subsequentes crises, é que o capitalismo continuará a ter crises cíclicas. A lei geral da acumulação capitalista, com todas as contradições que Marx lhe diagnosticou na sua obra, mantém-se inalterada. Novas explosões sociais, como o primeiro par de décadas deste século já demonstrou sobejamente, são inevitáveis. E esta é a questão fundamental.

As restantes diferenças, que perante aquela semelhança só podem ser consideradas superficiais, não só não invalidam de forma alguma a teoria leninista do partido revolucionário como, muito pelo contrário, reforçam-na.

A fragmentação e desorganização em que se encontra a classe trabalhadora, na fase imperialista do capitalismo, torna a luta económica, per se, completamente estéril. Nestas condições, a construção da organização revolucionária é mais difícil do que fora nas economias europeias industriais do séc. XX, mas, na mesma medida, a sua existência é mais determinante para o desenvolvimento da luta de classes.

A organização de trabalhadores numa “economia de serviços” com enorme concentração de capital, sob brutal precariedade e em locais de trabalho que reduzem ao mínimo o contacto entre trabalhadores, depende de uma organização política e não apenas económica. Os trabalhadores, na luta pela melhoria das suas condições de vida, chocam imediatamente com o Estado burguês. O papel que Lenin atribuiu ao partido marxista em O que fazer? — o de unir e elevar as lutas económicas numa grande luta política contra o Estado burguês — é hoje a única forma de conseguir qualquer avanço social mesmo nos países imperialistas.

A experiência da sindicalização de trabalhadores de call center, que a par do turismo, em Portugal, está a tomar o lugar das fábricas, demonstra precisamente isto. Não teria sido possível erigir um sindicato ou uma comissão de trabalhadores somente a partir de um local de trabalho e confinada à luta contra os seus respectivos patrões. Até o recrutamento de trabalhadores de uma dada empresa para o sindicato tem de ser feito por trabalhadores de uma segunda empresa, sob pena de despedimento imediato. Todos os desafios actuais empurram os trabalhadores para as formas mais avançadas de organização.

Mesmo o carácter das direcções de esquerda, acima exposto em traços gerais, aponta para outra tarefa fundamental da organização revolucionária e confere-lhe redobrada relevância: o de se constituir enquanto memória histórica da classe trabalhadora contra o rebaixamento da aprendizagem que nos legaram as gerações passadas de trabalhadores. As experiências históricas do movimento operário e socialista do séc. XX, desde a Revolução Russa à Revolução Portuguesa, estariam esquecidas ou enterradas sob uma montanha de historiografia revisionista e infindáveis rebrandings do liberalismo sem o titânico esforço de preservação da memória que foi levada a cabo por revolucionários marxistas de todos os países.

A última grande tarefa que devemos sublinhar foi igualmente apontada por Lenin e Trotsky, ainda que muitas vezes seja esquecida por aqueles que se reclamam leninistas. Falamos da construção de partidos operários de massas como os da Segunda e Terceira Internacionais os conheceram.

A dupla tarefa dos revolucionários

Aquilo a que chamamos a dupla tarefa dos revolucionários no período actual é, sucintamente, a formação do núcleo de revolucionários organizados em simultâneo com a construção do partido de massas.

Esta necessidade advém da impossibilidade de organizar uma suficiente parte da classe trabalhadora contra o Estado burguês, i.e., na luta política, sem um instrumento político de proporções adequadas. Só com um partido de trabalhadores capaz de concentrar em si todas as tendências do movimento operário e uma maioria das organizações económicas da classe numa federação democrática podemos colocar seriamente a possibilidade de uma parte suficiente da classe trabalhadora ser ganha, no momento decisivo, para o programa revolucionário.

A concentração de trabalhadores numa mesma organização que lhes permita politizar-se e entrar em contacto com vários sectores e camadas da classe, no entanto, não surgirá com a facilidade que verificámos no século de Marx e Engels, o séc. XIX, quando os revolucionários tinham um forte movimento operário e socialista entre os quais trabalhavam como tendência e, durante um período, como direcção. Nem os estalinistas nem a nova esquerda procuram construir grandes partidos da classe trabalhadora. Pelo contrário, temem esse desenvolvimento.

Os primeiros, herdeiros do 7º Congresso da Comintern e da sua teoria das frentes populares, repetem chavões sobre o “povo” e uma grande aliança interclassista — com o proletariado, a pequena-burguesia e os “sectores não monopolistas” da burguesia. Isto paralisa-os, impede-os absolutamente de responder às necessidades dos trabalhadores — que chocam inevitavelmente com os dos patrões — e, por isso, impede-os de se desenvolverem como os partidos operários de massas. Olham com tremenda desconfiança para qualquer organização operária que demonstre combatividade e funcione democraticamente — fora do controlo das estruturas estalinistas — precisamente por verem nela um perigo mortal para o frágil statu quo sobre o qual equilibram as suas carreiras burocráticas.

Já a nova esquerda é encabeçada por direcções que olham para qualquer tipo de crescimento, organização e discussão nas bases dos partidos com um terror paranóico. O seu parlamentarismo é total. Aspiram a ter não uma base de militantes mas uma base de eleitores apenas. Aspiram, acima de tudo, a governar, a gerir o capitalismo e a salvá-lo de si próprio — algo que Varoufakis, uma destacada figura da nova esquerda e ex-ministro das finanças do governo Syriza, tão explicitamente declarou.

A construção de amplos partidos operários depende, portanto, da força da classe trabalhadora e da acção organizada daqueles que entendem essa necessidade: os revolucionários organizados.

A organização revolucionária e o internacionalismo

Por fim, é necessário fazer uma breve nota sobre o internacionalismo proletário.

Todas as organizações internacionais da classe trabalhadora foram fundadas por revolucionários. A Primeira, a Segunda e a Terceira Internacionais não foram excepção. Pode dizer-se, aliás, que um dos sinais mais claros de abandono de uma perspectiva revolucionária é o abandono do internacionalismo. Não foi por acaso que, após a degeneração burocrática da URSS e de todos os partidos comunistas estar completa, Stalin procedeu à dissolução da Comintern. Desde aí, nunca mais a classe trabalhadora teve uma coordenação internacional ao nível da Internacional fundada por Lenin e Trotsky[2].

Hoje, mais do que nunca, a articulação dos revolucionários a nível internacional é indispensável à vitória do socialismo. Eis a razão pela qual a construção de uma ferramenta tão internacional como o capital, e capaz de fazer-lhe frente em todos os países, é levada a cabo pelo Comité por uma Internacional dos Trabalhadores.

[1] Clement Attlee foi o dirigente do Labour Party e Primeiro Ministro do Reino Unido nos anos imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial, tendo ganho as eleições contra Winston Churchill. O seu governo social-democrata aplicou uma série de reformas com vista ao pleno emprego, criou o Serviço Nacional de Saúde britânico, nacionalizou uma série de indústrias e, com efeito, praticou uma série de políticas keynesianas para desenvolver as forças produtivas do Reino Unido sem jamais colocar em causa o modo de produção capitalista.

[2] A tentativa de formação de uma Quarta Internacional, lançada pela Oposição de Esquerda (trotskista), por vários motivos que aqui não podemos tratar, fracassou.

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