Até 3 de Outubro de 1981, o princípio básico da Lei Portuguesa da Nacionalidade aplicava o Jus soli, ou seja, tinham direito à nacionalidade portuguesa todos os sujeitos nascidos em solo português e respectivos territórios ultramarinos. No entanto, a partir de 1981, entra em vigor a nova lei da nacionalidade nº 37/81 que passa a consagrar o princípio do Jus sanguinis, referindo-se ao direito de sangue que faz com que a nacionalidade de um indivíduo esteja dependente da dos seus antepassados.

Do Jus soli ao Jus sanguinis

Esta alteração deveu-se à necessidade de restringir e controlar os fluxos imigratórios das ex-colónias que então se fazia sentir, uma medida que vinha na sequência das tendências contra-revolucionárias que atingiram o seu auge nos anos 80, pondo por terra os direitos consagrados com a revolução de 74. Com esta mudança na lei, que procurava condicionar a circulação dos imigrantes e a integração dos já aqui estabelecidos, muitas pessoas das ex-colónias residentes em Portugal mantiveram a nacionalidade, enquanto que outros perderam-na, contribuindo assim para a criação de toda uma geração de apátridas e indivíduos sem documentação. Desde o ano em que entrou em vigor, esta lei já sofreu 9 alterações (10 com a promulgação do decreto-lei 71/2017 no passado dia 2), no entanto o Jus sanguinis prevalece até aos dias hoje.

Actualmente, pelas mais diversas razões, filhos de imigrantes deparam-se com problemas provenientes da negação do direito à nacionalidade, mesmo nascendo em território português. O próprio requerimento de nacionalidade tem actualmente custos bastantes elevados: são exigidos 200€ para dar início ao processo, aos quais se somam encargos extra, como por exemplo o exame de português que custa 70€. A necessidade de haver uma prova de língua portuguesa, até para imigrantes de países de língua oficial portuguesa, é problemático. A fluência da língua deve ser um direito, materializado por um ensino público de qualidade e gratuito, e nunca um dever, uma barreira, já que esta não existe para os filhos de portugueses.

Este tipo de valores impossibilita os trabalhadores imigrantes — muitos dos quais se encontram em condições precárias onde apenas ganham o ordenado mínimo ou frequentemente menos — de avançarem com o processo. São mantidos, por isso, numa situação de “ilegalidade”, originando todo o tipo de discriminações relacionadas com direitos sociais, quer seja no trabalho — muitos trabalhadores não têm direito a subsídios nem a segurança social, trabalham horas excessivas sem direito a folgas ou feriados — como na educação, visto que certas escolas não aceitam alunos sem comprovativo de residência. Sem nacionalidade o trabalhador não pode, por muito que seja esse o seu desejo, integrar-se politicamente quer em partidos, quer em sindicatos. Nesta situação vimos uma fatia considerável de trabalhadores isolados da luta que lhes concerne, sem instrumentos de reivindicação ao seu dispor. A nível da saúde, segundo a legislação em vigor, os cidadãos estrangeiros que não têm autorização de residência ou de permanência, ou sem visto de trabalho, têm acesso aos serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) tal como qualquer outro cidadão. A grande questão é se estas famílias têm ou não capacidade económica para suportar os custos de saúde, ditos básicos, como acesso a dentista, médico de família, plano nacional de vacinação, etc. Todos estes direitos que muitas pessoas não têm, deveriam ser considerados direitos fundamentais e indispensáveis, que melhoram a qualidade de vida de uma vasta camada da população e, consequentemente, de toda a sociedade.

Debate e mudanças à lei

Recentemente, PSD, BE, PCP e PS apresentaram propostas de alteração relativamente à lei. O PSD propõe o alargamento do Jus sanguinis para os netos de emigrantes nascidos no estrangeiro, mesmo que estes não tenham qualquer tipo de vínculo com o país. Por outro lado, o BE faz uma proposta para alargar o princípio de Jus soli, propondo, assim, que todos aqueles que nasçam em Portugal tenham acesso à nacionalidade e, logo, plenos direitos enquanto cidadãos portugueses. O PCP sugere mudanças legislativas à norma estabelecida em 2006, limitando-se a reconhecer a nacionalidade a pessoas nascidas em Portugal, em que um dos progenitores comprove a sua residência no país, mantendo estas pessoas à mercê das barreiras económicas e burocráticas acima descritas. Por fim, o PS pretende somente reduzir a duração de residência requerida a pelo menos um dos pais para que os filhos possam obter a nacionalidade ao nascer em solo português de 5 para 2 anos.

Uma questão de classe

O direito à nacionalidade, enquanto direito social, deve ser enquadrado numa perspectiva de classe. A separação entre trabalhadores portugueses e trabalhadores imigrantes só serve para nos dividir. A classe dominante desloca o foco do conflito entre capital/trabalho para um conflito intra classe, entre trabalhadores nacionais e estrangeiros, para melhor nos explorar. Discriminação no local de trabalho, precariedade e abusos de autoridade são algumas das situações recorrentes. O trabalhador imigrante está, assim, mais exposto a abusos por parte dos patrões, sendo usado como força de trabalho barata e precária. As condições dos trabalhadores autóctones também são afectadas, pois a sua capacidade de resposta é mitigada quando a classe trabalhadora se encontra dividida em género, raça, nacionalidade, credo. Assim, o que na realidade deve ser construído é uma unidade de classe para combater a precariedade no trabalho e o seu verdadeiro opressor a fim de melhorar as nossas condições de vida, sempre reconhecendo que até a contradição entre capital/trabalho — de quem detém os meios de produção e de quem emprega a sua força de trabalho — ser resolvida, qualquer conquista é temporária.

Campanha por outra lei da nacionalidade

A campanha, que neste momento já junta quase 40 organizações, visa o alargamento do Jus soli para qualquer pessoa nascida em Portugal, com retroactividade para quem foi prejudicado pela mudança de lei em 1981, promovendo uma petição que será entregue para discussão na Assembleia da República. A Coordenadora da Campanha já se reuniu com os grupos parlamentares do PCP e do BE, que até à data mantinham uma posição recuada relativamente à proposta da campanha, estando o Bloco mais próximo das reivindicações apresentadas ao ser a única força parlamentar a defender o jus soli. É palpável, cada vez mais, a pressão que os partidos têm sentido com esta campanha, originando mais discussões acerca da lei e tendo sido feitas novas propostas desde o aparecimento desta. No passado dia 12 de Junho foram discutidas no Parlamento as propostas do PS e do PCP, ao mesmo tempo que decorria um protesto simbólico nas escadarias da Assembleia em conjunto com uma conferência de imprensa.

A recolha de assinaturas para a petição em curso tem-se caracterizado por um grande apoio à campanha, tanto por trabalhadores imigrantes como autóctones, que podem e devem ser mobilizados. Sabemos que a petição em si está longe de nos garantir a vitória, mas é uma excelente ferramenta para colocar a nossa proposta nas ruas, de forma contínua, possibilitando um contacto que permite ampliar o movimento que será necessário para vencermos. Desta luta não podemos arredar, cada passo dado é um golpe nos interesses do grande capital que vê a sua mina de trabalho barato cada vez mais consciente da sua condição.

Vemos, portanto, a entrega de assinaturas apontada para Outubro deste ano como um primeiro passo nesta luta. Os próximos passos terão de se focar no alargamento da própria campanha, em especial às principais organizações que se reivindicam do campo da esquerda e dos trabalhadores. Consideramos esta uma luta central para os trabalhadores e jovens em Portugal, capaz de criar pontes com um sector da classe, a imigrante, que tem sido negligenciada pela acção política do movimento socialista. A unidade de classe de que falámos é essencial para a luta de todos, ela pode e deve ser materializada nesta campanha, apontando à construção de um movimento de massas que force o actual governo a responder às justas aspirações à nacionalidade e à cidadania de milhares de trabalhadores e jovens que vivem em Portugal.

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