A violência obstétrica é a violência machista que se comete contra mulheres durante o pré-parto, parto e pós-parto. Pode ser tanto violência física — agressões ou restrições físicas, utilização de métodos ou fármacos sem autorização, indução desnecessária do parto, negação do alívio à dor, etc. — como violência psicológica — insultos, ameaças e discriminação, desconsideração dos pedidos e preferências da parturiente, omissão de informação sobre o parto e sobre os procedimentos adotados, etc.

Em Portugal, esta violência é comum e brutal. Inquéritos sobre a experiência de parto feitos pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) indicam que até um terço de todas as parturientes são vítimas de desrespeito, abuso ou discriminação1.

Apesar de não existirem ainda estudos ou dados sobre racismo, homofobia e transfobia obstétricas, são conhecidos casos em que profissionais negaram epidurais a mulheres negras dizendo que “aguentam mais a dor”, negaram a presença da companheira no caso de casais lésbicos ou negaram procedimentos a homens trans e pessoas não-binárias2.

A episiotomia e o “ponto do marido” – mutilação genital feminina nos hospitais de Portugal

A falta de controlo sobre o que acontece com o nosso corpo durante o processo é também evidente. Segundo os mesmos inquéritos, a maior parte das mulheres não é informada nas consultas pré-natais que pode apresentar um plano de parto, documento onde as parturientes revelam à equipa médica as suas preferências em relação aos procedimentos relacionados com o parto. Mesmo quando apresentado, este inquérito é desrespeitado quase metade das vezes. Metade das mulheres não são sequer consultadas sobre as intervenções às quais são sujeitas e apenas 1 em cada 10 tem um parto sem intervenção. São números assustadores. E fica pior.

A episiotomia — corte na zona do períneo —, prática desaconselhada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), ocorre em cerca de 70% dos partos vaginais em Portugal, contrastando com outros países europeus, onde não chega aos 7%3. Mas a violência não fica por aqui. O chamado “ponto do marido” — quando os médicos cosem o corte da episiotomia com mais pontos do que os necessários, tentando forçar a vagina a ficar mais apertada com o único propósito de dar prazer ao homem nas relações sexuais — é prática extremamente comum. Somos tratadas como objeto sexual, e muitas de nós passam a ter dores nas relações sexuais. A episiotomia e o “ponto do marido” são nada menos do que formas de mutilação genital feminina a ser praticadas nos hospitais de Portugal!

A destruição da educação pública e do SNS aumentam a violência obstétrica

Esta violência obstétrica, com todas as práticas arcaicas e carniceiras, reflete, antes de mais, o ambiente reacionário e conservador que domina o ensino de medicina em Portugal. Os cursos de medicina são consciente e sistematicamente tornados inacessíveis aos filhos da classe trabalhadora, reservados às “elites”, aos filhos da burguesia e da pequena-burguesia mais abastada — camadas sociais cheias de desprezo pelos pobres.

As elevadíssimas propinas e custos com materiais de estudo, direções que não prestam contas nem a alunos nem a trabalhadores das instituições de ensino, a rédea solta para o despotismo dos docentes e para todo o tipo de atropelos aos direitos dos estudantes — tudo isto garante que estudantes da classe trabalhadora, assim como mulheres, pessoas LGBTI, negros e imigrantes, são impedidos de chegar ao curso de medicina ou filtrados ao longo do curso.

É por isso que o combate contra a violência obstétrica é também o combate por um sistema de educação universal, verdadeiramente público, gratuito e democrático. E o curso de medicina é sem dúvida uma das ilustrações mais trágicas daquilo que um sistema educativo anti-democrático produz. Aqui não temos simplesmente a falta de uma educação feminista, anti-racista e inclusiva, temos verdadeiramente um sistema educativo que reforça as ideias reacionárias.

Saídos da universidade, os estudantes passam a médicos, o grupo profissional mais privilegiado dos hospitais, num ambiente que promove a violência psicológica e assédio profissional especialmente contra enfermeiros e outros profissionais de saúde.

Isto é agravado pelo subfinanciamento da saúde pública, algo que, além de impedir que o SNS dê resposta à população, alimenta a violência obstétrica.

A situação tornou-se de tal forma grave que, no verão de 2019, ainda antes da pandemia, a própria Ordem dos Médicos (OM) alertou para a falta de obstetras, de anestesistas e de equipamentos médicos como incubadoras e até ambulâncias. Segundo a OM, entre os 1.400 obstetras registados na ordem, apenas 850 trabalham no SNS, e que “seriam necessários pelo menos mais 150 especialistas e 530 anestesistas para garantir um serviço seguro4. Vale notar que metade desses 850 têm mais de 55 anos e, portanto, isentos de fazer turnos noturnos e horas extras, comummente empregues pelo governo para compensar a falta de profissionais do SNS.

O resultado são partos feitos à pressão — com utilização de métodos de indução do parto mesmo quando medicamente desnecessários, com toda a violência que isso acarreta — por equipas esgotadas. Como é possível garantir a segurança e bem-estar das parturientes nestas condições?

Perante esta crise, a resposta da Ministra da Saúde, Marta Temido não foi aumentar o financiamento da Saúde para que se pudessem contratar mais profissionais e encomendar os materiais em falta, mas recorrer a hospitais privados e encerrar de forma rotativa as urgências de quatro das maiores maternidades da zona de Lisboa. É a política do PS: manter o subfinanciamento dos serviços públicos e aproveitar o inevitável caos para garantir o avanço e os lucros do grande capital.

Sem nada se ter resolvido, estamos hoje perante um cenário catastrófico. Várias urgências obstétricas arriscam fechar e aumentou não só a violência obstétrica como, ainda mais dramaticamente, a taxa de mortalidade materna. De 7 mortes por 100 mil nascimentos, em meados da década passada, saltamos para as 17 mortes, em 20185. É preciso recuarmos ao início da década de 80 — quando 26% dos partos se faziam fora de hospitais — para encontrar valores tão altos.

Mais um negócio lucrativo para a saúde privada!

Somos violentadas por um sistema que gasta milhões a salvar bancos privados mas não é capaz de financiar o SNS para garantir a nossa segurança e saúde. A redução da dívida pública, a prioridade do PS, é conseguida à custa do subfinanciamento e cativações nos sectores como a educação ou a saúde. E o capital financeiro lucra. Antes de mais, o capital que investe nos hospitais privados, onde o parto é um negócio.

Nos hospitais públicos, 30% dos partos são cesarianas — muito mais do que noutros países europeus. Nos hospitais privados, o valor sobe para uns assombrosos 70% porque as cesarianas são mais lucrativas do que o parto sem cirurgia1. O mesmo acontece com vários outros procedimentos violentos nos hospitais privados.

Só a luta da nossa classe pode acabar com esta violência!

As propostas até agora apresentadas no parlamento não são solução. A criminalização da violência obstétrica, proposta pela ex-deputada Cristina Rodrigues, não só iria punir profissionais exaustos e sem meios como acabaria por agravar o problema ao diminuir ainda mais o número de profissionais nos hospitais. A sensibilização, proposta pelo BE, também não vai à raiz do problema. Punição ou sensibilização de indivíduos não resolve um problema que é sistémico.

Pior ainda é a solução dos partos em casa, apresentada por certas ativistas. Esta “solução” pode parecer muito boa para as madames da pequena-burguesia e para as patroas, mas para a classe trabalhadora, seria voltar ao tempo da ditadura fascista, quando não havia SNS e as mulheres pobres tinham os filhos em casa, sem segurança nem higiene. O que queremos é acesso a um SNS público, gratuíto e de qualidade!

Exigimos um SNS totalmente público, gratuito e de qualidade. Exigimos a democratização da saúde, com os hospitais a ser democraticamente geridos por quem neles trabalha e com os procedimentos médicos a ser comunicados e discutidos com os pacientes.

Queremos que todo o sector da saúde seja nacionalizado. Basta de hospitais privados a fazer da nossa saúde e dos partos um negócio.

É necessária uma planificação nacional da saúde e da educação, com um grande aumento do investimento em ambos os sectores, a formação e contratação de muitos mais profissionais, garantindo jornadas de trabalho dignas e seguras para trabalhadores e pacientes.

Exigimos educação sexual inclusiva num sistema de educação igualmente público, gratuito e de qualidade sob o controlo democrático de trabalhadores, docentes e estudantes. Só assim podemos acabar com o machismo, o racismo e a LGBTIfobia na educação, assim como com o elitismo do ensino universitário que tem resultados tão brutais na medicina.

Estas medidas, como é óbvio, são impossíveis sem a nacionalização sob controlo democrático dos trabalhadores da banca e dos sectores chave da economia, garantindo que a riqueza que produzimos é usada para melhorar as nossas vidas e não para encher os bolsos dos patrões e grandes capitalistas. A erradicação da violência machista, de toda a opressão sofrida por nós, só pode ser conseguida com o derrube do capitalismo e a construção de uma sociedade socialista, que coloque não o lucro, mas sim o bem-estar e o desenvolvimento humano como objetivo último.

Nós, mulheres trabalhadoras, quando lutamos e procuramos soluções concretas para os nossos problemas, somos sempre levadas a concluir que só a luta revolucionária de toda a nossa classe pode trazer conquistas, e que só com a revolução essas conquistas podem ficar seguras.


Notas:

1.  Experiências de Parto em Portugal – Inquérito às mulheres sobre as suas experiências de parto

2.  "Se é mais claro ou mais escuro, perguntam logo quem será o pai": as histórias de mulheres negras no parto

3.  European Perinatal Health Report - Health and Care of Pregnant Women and Babies in Europe in 2010

4.  Urgências obstétricas em risco de fechar: o que está em causa?

5.  Pordata - Taxa de mortalidade materna - Quantas mulheres morrem devido à gravidez ou após o parto, por cada 100.000 nascimentos?

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