Num artigo de março escrevemos que nas urgências obstétricas estamos perante um “cenário catastrófico”. Não foi um exagero. Nas últimas semanas encerraram, por falta de profissionais de saúde, as urgências de ginecologia e obstetrícia dos hospitais de S. Francisco Xavier (Lisboa), Almada, Barreiro-Montijo, Setúbal, Amadora-Sintra, Loures, Braga, Portalegre e Caldas da Rainha, pondo em perigo parturientes e bebés.1 No entanto, a situação nas urgências obstétricas é apenas uma parte da destruição do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Nos últimos meses dezenas de chefes de urgências pediram demissão e milhares de médicos e enfermeiros pediram escusas de responsabilidade por falta de condições de trabalho. Apesar do governo dizer nunca terem havido tantos profissionais no SNS como agora, de acordo com as Ordens e os sindicatos do sector, faltam centenas de profissionais de saúde nos hospitais do país. “Não conheço nenhuma urgência do país que não esteja desfalcada”, diz o bastonário da Ordem dos Médicos. A própria formação da próxima geração de profissionais está em risco quando os internos fazem urgências sem especialistas presentes no serviço. A situação nos cuidados de saúde primários é igualmente trágica: há 1,3 milhões de pessoas sem médico de família — mais do que em 2015. O pico de aposentações de médicos previsto para este ano e para o próximo só irá piorar a situação.

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A situação nas urgências obstétricas é apenas uma parte da destruição do Serviço Nacional de Saúde.

Subfinanciamento crónico continuou no governo do PS, alimentando os crescimento dos grupos privados

A crise do SNS é o resultado do seu subfinanciamento crónico de décadas. Todos os anos a despesa do SNS ultrapassa o orçamento previsto pelo Orçamento de Estado (OE). A diferença é paga com recurso a dívida — alimentando os lucros milionários da banca privada — depois coberta por transferências extraordinárias do OE. A juntar a isto, continuaram as cativações na saúde, mesmo durante a pandemia.

Sem profissionais suficientes, as listas de espera para diagnósticos ou cirurgias são de anos. Existem tempos máximos de espera, a partir dos quais os pacientes são encaminhados para hospitais privados, que são por isso financiados com o dinheiro público.

A falta de equipamentos de diagnóstico e terapêutica necessários para prestar serviços médicos pode levar ao mesmo desfecho: os pacientes são mandados para outros hospitais públicos ou para hospitais privados. Ainda em 2015, já mais de metade da despesa dos hospitais privados era paga pelo Estado, apesar das cirurgias e consultas vindas do SNS serem uma minoria. Fica claro que é o Estado a financiar o sistema de saúde privado com gigantescas injeções de dinheiro público que devia ser investido no SNS.

Como consequência, na década passada, os lucros dos cinco grandes grupos privados de saúde em Portugal — Luz, José Mello Saúde, Lusíadas, Trofa e Hospitais Privados do Alves — cresceram todos os anos. Esta gigantesca acumulação de capital permite-lhes aumentar o número de hospitais privados — que ultrapassou o de públicos em 2016, representando mais de um terço da capacidade do país — e os salários dos profissionais de saúde de modo a antecipar a derrocada do SNS.

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Na década passada, os lucros dos cinco grandes grupos privados de saúde em Portugal — Luz, José Mello Saúde, Lusíadas, Trofa e Hospitais Privados do Alves — cresceram todos os anos.

Outra prova de que é o Estado a financiar os privados foi o que aconteceu com as Parcerias Público-Privadas (PPPs) da saúde. Não lucrando o combinado durante a pandemia, os privados a quem foi entregue a gestão dos hospitais públicos de Loures, Braga e Vila Franca de Xira voltaram a entregá-los à gestão pública.2 Agora exigem milhões ao Estado em indemnização das perdas que tiveram com a pandemia. O governo PS fará o obséquio de pagar estas indemnizações.

É de uma hipocrisia sem limites que os comentadores burgueses nos queiram fazer acreditar que todos os males do SNS se devem ao fim das PPPs, quando foram os próprios privados que abdicaram da sua gestão para evitar maiores perdas de lucros durante a pandemia.

O SNS está ainda envolvido por uma gigantesca teia de empresas privadas com contratos públicos para a aquisição de bens e serviços — como a limpeza dos hospitais ou fornecimento de materiais — que vão parasitando o sector público da saúde através da concertação de preços.

Está claro que o subfinanciamento cria uma bola de neve que degrada cada vez mais o SNS e alimenta a saúde privada. A burguesia que faz da saúde um negócio não podia estar mais satisfeita com os serviços prestados pelo PS.

Governo recusa-se a tocar nos lucros dos privados durante a pandemia, acentuando a degradação do SNS

Estes serviços aprofundaram-se com a chegada da pandemia. O governo não aumentou radicalmente o financiamento de um SNS subfinanciado, não contratou profissionais de saúde em número suficiente, não nacionalizou os hospitais privados.

Em vez disso aumentou o financiamento em apenas 6% enquanto as despesas do SNS aumentaram 12%. A suborçamentação atingiu assim um recorde o ano passado, quando os hospitais tiveram mais de 1.100 milhões de euros em falta para poder funcionar devidamente. Mas o governo prevê que este ano termine com um novo recorde!

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A degradação do SNS aprofundou-se com a chegada da pandemia. O governo não aumentou radicalmente o financiamento de um SNS, não contratou profissionais de saúde, não nacionalizou os hospitais privados.

Em vez disso, houve falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para todos os trabalhadores dos hospitais, aumentando o número de infecções. As empresas privadas contratadas para fazer as limpezas dos hospitais, não querendo aumentar os gastos com os materiais de limpeza necessários para combater a covid-19, puseram em risco trabalhadores e pacientes, tendo em vários casos sido as próprias trabalhadoras da limpeza a comprar os materiais necessários com os seus baixíssimos salários.

Em vez disso, o SNS esteve permanentemente desfalcado, não havendo profissionais suficientes para substituir aqueles que tinham de ficar de quarentena. Mais de 2500 médicos e enfermeiros simplesmente saíram do SNS neste período, preferindo a saúde privada com melhores condições de trabalho. Com efeito, a falta de pessoal obrigou a que toda a vacinação fosse feita com recurso a horas extraordinárias.

Enquanto isso, os hospitais privados continuaram a funcionar para os lucros e tiveram a ousadia de numa primeira fase negar-se a receber doentes covid-19 transferidos do SNS — quando este já não tinha mais camas disponíveis! — enquanto não se viram satisfeitos com a quantidade de dinheiro público garantido pelo Estado. Acabaram por receber rios de dinheiro, com cada paciente a valer-lhes cerca de 2.500 euros.


Ao respeitar religiosamente a propriedade privada de quem faz da saúde um negócio, o governo teve de buscar outra forma de dar resposta às sucessivas ondas de infeções. Foi assim que unidades hospitalares inteiras passaram a dedicar-se exclusivamente aos cuidados intensivos de covid-19. Ficaram por fazer 1.5 milhões de consultas e 150.000 cirurgias só no ano de 2020. Como resultado, neste período houve um acréscimo de 6.000 mortes não relacionadas com covid-19, face à média dos anos anteriores. Milhares de mortes às mãos de um governo que não tem pejo em decretar requisições civis para proibir greves — como os enfermeiros em 2019 — mas se recusa a pôr em causa os lucros dos privados através da mesma lei da requisição civil — já nem falando em nacionalização! — durante uma pandemia que chegou a matar às centenas por dia.

O governo ataca o SNS frontalmente

Perante o estado do SNS a resposta imediata do governo para este verão é reforçar o pessoal através de contratos precários com recurso a outsourcing e ETTs. É uma continuação da política iniciada durante a pandemia, em que mais de 60% dos novos profissionais contratados foram precários. Estas ETTs também recebem rios de dinheiro público para manter os profissionais da saúde precários. 

A verdade é que os profissionais do SNS estão exaustos ao fim de trabalhar durante dois anos de pandemia em condições muito difíceis e com ritmos de serviço insanos — sendo até impedidos de tirar férias. Muitos passaram para contratos de 20 horas semanais ou tiraram baixa. A contratação de umas poucas centenas de profissionais não vai mudar a situação em que se encontra o SNS.

Mas não satisfeito com ter deixado o SNS neste estado, o governo pretende agora dar-lhe a machadada final com a aprovação do novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, apenas 2 anos após a publicação da nova Lei de Bases da Saúde. Este Estatuto prevê a “cedência de exploração de serviços hospitalares” e a criação de uma direção executiva do SNS que o iria gerir como se de uma empresa se tratasse — seguindo o mesmo modelo que tem vindo a privatizar o NHS em Inglaterra, dando de bandeja aos privados os segmentos mais lucrativos do sector. São riscadas todas as referências a Saúde Pública ou contratação coletiva, garantindo que a precarização irá aumentar mesmo nos segmentos que se mantiverem sob gestão pública.

A municipalização é um ataque igualmente perigoso que foi avançado por este governo. A construção, gestão, manutenção e conservação de infraestruturas, o apoio logístico e uma parte dos recursos humanos dos Centros de Saúde ficarão a cargo de autarquias, gerando-se uma descentralização e fragmentação no SNS. A decisão de os privatizar ficará a cargo de cada autarquia.

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Os profissionais do SNS estão exaustos ao fim de trabalhar durante dois anos de pandemia em condições muito difíceis e com ritmos de serviço insanos.

Só a nacionalização dos privados, investimento massivo e controlo democrático dos trabalhadores e utentes pode salvar o SNS!

O covid-19 ainda não está sob controlo. Novas estirpes continuam a surgir. Os efeitos a longo prazo em pessoas infectadas e a permanência de sintomas durante semanas ou meses (a chamada “covid longa”) ainda estão a ser estudados. O que já é claro é que para muitas destas pessoas será necessária a hospitalização muito mais frequentemente. 

Mais ainda, a degradação do SNS e a degradação brutal das condições de vida da classe trabalhadora e da esmagadora maioria da população significa o ressurgimento de doenças que haviam sido erradicadas de Portugal ou a proliferação de doenças que nunca tiveram condições para existir aqui. A isto juntam-se as alterações climáticas e a destruição do meio ambiente que o sistema capitalista em decadência está a provocar, o que ameaça criar novas epidemias e pandemias.

A resposta à pandemia, se demonstrou algo com clareza, foi o quão importante é haver um SNS público e centralizado.3 Os EUA foram uma demonstração dramática de como um país extremamente desenvolvido pode ser devastado por um vírus devido à ausência de um sistema público de saúde.

Mas também vimos que não basta um SNS como o atual. A gestão das redes de cuidado primário e hospitalares tem de ser feita por órgãos democráticos dos próprios trabalhadores da saúde.

As dezenas de propostas apresentadas pela esquerda parlamentar para “salvar o SNS” ignoram sempre o problema fundamental: a forma como é gerido o SNS beneficia sistematicamente o grande capital. O único caminho é chocar de frente com os interesses dos capitalistas, declarar guerra a quem faz das nossas doenças e das nossas mortes um lucrativo negócio.

O SNS foi fruto da luta coletiva da classe trabalhadora durante a Revolução Portuguesa e nos anos que se seguiram. A defesa do SNS enquanto serviço público, gratuito e de qualidade só pode ser alcançada com um programa socialista que recuse a visão institucional seguida pelo BE e pelo PCP, e que se vire para as ruas, para a luta de massas, como o meio para conseguir vitórias que realmente transformem a vida de milhões de pessoas. Mantendo os métodos institucionais do reformismo, o SNS será sangrado até que os privados se apoderem de todo o sector e o acesso à saúde nos seja retirado por completo.

Defendemos:

1. Investimento massivo no SNS, nas infraestruturas e no material médico! Contratação de todos os trabalhadores necessários com condições e salários dignos.

2. Criação de órgãos de trabalhadores da saúde para gestão democrática dos hospitais, a única forma de garantir a eficiência dos serviços e do atendimento no SNS.

3. Contratação direta e coletiva de todos os trabalhadores dos hospitais, fim das ETTs e dos negócios com empresas privadas de limpeza e catering!

4. Nacionalização sem indemnização de todos os hospitais e clínicas privadas.

5. Nacionalização sem indemnização de todas as empresas com contratos de aquisição de bens e serviços do SNS.

6. Nacionalização sem indemnização de toda a banca de forma a garantir os recursos para a execução destas medidas e a colocar a gigantesca riqueza acumulada durante décadas pelos capitalistas ao serviço do bem-estar da esmagadora maioria da população.


Notas:

1. Neste contexto é de uma hipocrisia lacerante que António Costa venha dizer-se "decepcionado" com a ilegalização do aborto nos EUA. 15 anos depois da legalização em Portugal 1 em cada 3 hospitais do SNS continuam sem fazer abortos — havendo distritos inteiros como Beja ou Portalegre sem acesso — e 600 mulheres têm de ir abortar a Espanha anualmente devido à óbvia insuficiencia que é só poderem abortar até às 10 semanas de gestação.

2. A única PPP da saúde que sobra é o Hospital de Cascais.

3. Durante a pandemia só houve problemas com a vacinação no queimódromo do Porto, único local no país gerido por um privado.

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