Ontem por volta das 11h30 faltou a luz em todo Portugal continental, Estado Espanhol e sul de França. Em Portugal a eletricidade só viria a ser reposta de forma gradual durante a tarde e noite. Lisboa e Porto só voltaram a ter luz perto das 21h00 e foi apenas durante a manhã de hoje que a eletricidade voltou a regiões do Algarve. Foi o apagão de maior duração na história do país. Alguns concelhos ficaram sem abastecimento de água por várias horas e pelo menos certos locais no concelho de Sintra continuam sem distribuição até à hora de publicação deste artigo. A rede de telecomunicações e dados móveis de internet também foi afetada em maior ou menor grau, dependendo da operadora, deixando grande parte da população sem acesso a informação. As rádios privadas estiveram inoperacionais e portanto as 7 rádios públicas da RTP foram a mais fiável garantia de informação para quem tivesse acesso a rádios a pilhas.

Mas perante a confusão geral a informação de fontes oficiais foi escassa e tardia. Durante as longas horas que durou o apagão o governo elegeu as redes sociais como principal meio de comunicação. Uma decisão idiota visto a maior parte da população estar sem acesso à internet. Embora o Conselho de Ministros tenha reunido de forma permanente a partir das 13h00 em modo de gestão de crise e decretado crise energética, Montenegro só se dirigiu ao país pela primeira vez por volta das 15:00, com uma mensagem à comunicação social que chegou a pouca gente. Em campanha eleitoral, a sua principal preocupação não foi informar ou orientar a população no que esperar ou fazer, mas em empurrar a culpa do apagão para lá das fronteiras nacionais. O Ministro da Administração Interna não deu sinais de vida e outros Ministros, ao invés de tranquilizarem a população, vieram falar da possibilidade da origem do apagão ser um ataque cibernético russo, dando força às notícias falsas e teorias da conspiração que já circulavam pelas redes sociais e à demagogia nacionalista em ascenção devido ao plano de rearmamento europeu. As explicações e gestão de expectativas acabaram por vir dos porta-vozes da E-REDES e da Redes Energéticas Nacionais (REN), empresas privadas responsáveis pelo transporte e distribuição de energia.

Já a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) só enviou a primeira e única mensagem via SMS durante a tarde. A maioria da população só a recebeu à noite, ou nunca chegou a receber1. Os comboios e metropolitanos estiveram parados; os hospitais a funcionar com geradores a gasolina com poucas horas de autonomia e recorrendo a comunicações telefónicas, os centros de saúde sem sistemas de refrigeração para manter vacinas. Tudo isto demonstra a falta de preparação e investimentos nos serviços públicos para um situação de emergência.

Ainda mais grave foi o facto do Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) ter falhado em ativar a resposta de emergência, fazendo com que o INEM estivesse 20 minutos em baixo, perdendo várias chamadas do 112 e ainda completamente inoperacional entre as 19h30 e as 21h30. É o mesmo sistema com gestão privada que falha ano após ano durante os incêndios — incluindo o de Pedrógão Grande em que morreram 66 pessoas. Só os negócios escuros que unem os governantes burgueses e os privados explicam como uma empresa responsável por dezenas de homicídios por negligência ainda receba indemnizações do Estado, a última das quais, de 20 milhões de euros, atribuída pelo governo AD há uma semana! Se queremos evitar mais assassinatos o SIRESP tem de ser nacionalizado sem indemnização e sob controlo dos trabalhadores já!

Podemos ainda não saber a causa exata do apagão, mas sabemos que a gestão do apagão foi um falhanço a todos os níveis tanto do governo como da Proteção Civil. Foi a classe trabalhadora, com a sua solidariedade e entreajuda, que garantiu que ninguém passasse fome, sede, ou outras dificuldades. A ação da nossa classe, dos bombeiros e trabalhadores da saúde e proteção civil contrastaram com a dos agentes da PSP, de guarda à propriedade privada de supermercados e bancos. Momentos como este deixam claro que só o povo salva o povo, enquanto o Estado e as suas forças de repressão estão ocupados a proteger a propriedade privada e outros interesses da burguesia2.

Uma rede elétrica privatizada pensada para o lucro

As instituições políticas e financeiras Europeias impuseram a liberalização do sector energético e a separação entre a produção e transporte para permitirem a entrada de privados e mais facilmente se privatizar as empresas públicas. No Estado espanhol, onde se julga ter tido origem o problema que resultou no apagão, tanto a produção de eletricidade — Endesa, Iberdrola e Naturgy — como a distribuição — gerida pela Redeia Corporation, que detém a Red Elétrica de España — estão nas mãos de um punhado de grandes investidores e fundos, incluindo Blackrock3.

Em Portugal a situação é igual: tanto a Energias de Portugal (EDP), que resultou da nacionalização de várias companhias elétricas durante a Revolução Portuguesa, como REN e E-REDES, retalhos do grupo EDP, são hoje empresa privadas nas mãos de um punhado de grandes investidores e fundos, os dois principais a chinesa China Three Gorges Corporation e a estado-unidense Blackrock.

Na fase imperialista do capitalismo, todos os sectores são controlados por monopólios e oligopólios. Não é por acaso que a Blackrock seja acionista tanto de empresas espanholas como portuguesas: é o exemplo mais acabado da tendência monopolista do capital, estendendo os seus tentáculos para lá de qualquer barreira nacional ou sectorial de forma a conseguir ter o maior controlo de vastos sectores, cadeias de produção e distribuição para maximizar os seus lucros.

É precisamente o lucro que guia a ação destas empresas, e não garantir a estabilidade e segurança da rede. Como avisámos há uns anos, o “modelo de negócio” da EDP privatizada “consiste na venda da sua infraestrutura em Portugal para garantir capital rápido que lhe permita investir em mercados estrangeiros que garantam melhores taxas de lucro”, o que deixa a rede em cada vez pior estado4. Também no Estado espanhol tem sido evidente a deterioração das redes elétricas, os incêndios de subestações por falta de manutenção e mesmo o abandono total das instalações caso a rentabilidade alcançada pela geração e venda de eletricidade não atingisse os níveis desejados.[3] Não se tratam de limitações técnicas: manter a rede a funcionar em condições precárias é uma questão de rentabilidade económica. 

Como se não bastassem os imensos lucros que fazem com as faturas exorbitantes que nos apresentam! Nos últimos anos Portugal chegou a ter a eletricidade mais cara da União Europeia. Enquanto a REN privatizada gerou em 10 anos mais de 1000 milhões de euros de lucros e distribuiu mais de 400 milhões aos seus accionistas, e a EDP quase 10 vezes esse valor, milhares de pessoas morreram de frio nos invernos dos últimos anos por não terem como pagar. São as consequências assassinas da privatização do setor energético, que também explicam o apagão!

A privatização de serviços públicos essenciais é uma ferramenta para a acumulação de capital nesta fase de decadência e barbárie do sistema. A única alternativa capaz de inverter esta situação inaceitável é a expropriação dos grandes monopólios que controlam a produção e distribuição de eletricidade, sem indemnizações, para criar uma empresa pública de eletricidade que, sob o controlo dos seus trabalhadores, tenha como principal objetivo garantir um abastecimento estável e acessível a toda a população.


Notas:

1. Há dois anos previa-se a substituição, até 2027, deste método obsoleto pela difusão celular, que permite o envio de mensagens a múltiplos telemóveis numa determinada área em tempo real, mas neste momento o mais provavel é que a sua inauguração ultrapasse a data prevista.

2. Encontramos um trágico exemplo do abandono institucional da população na Comunidade Valenciana após a DANA em outubro de 2024: Testimonio desde Valencia. La autoorganización popular frente al abandono institucional. ¡Mazón dimisión y a prisión!

3. El apagón no es un accidente ¡Nacionalización de las eléctricas ya!

4. Os preços da luz continuam a bater recordes! Nacionalização das companhias elétricas já!

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