III. Batalha pela hegemonia ou desglobalização?

Desde a crise da covid-19, questionar o avanço da economia chinesa tornou-se um clássico da propaganda imperialista ocidental. Dados tendenciosos retirados do contexto que não são comparados com as referências equivalentes dos seus adversários são elevados à categoria de tendência para pintar um quadro tão negativo quanto possível.

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O objetivo político a alcançar é esconder ou, pelo menos, minimizar a estagnação da economia ocidental, começando pelos Estados Unidos e pelos seus maus resultados após 19 meses de guerra na Ucrânia. Mesmo as análises das perspectivas económicas do FMI ou do Banco Mundial são marginalizadas em favor de editoriais tendenciosos do The Economist ou do The Wall Street Journal. É claro que, de tempos a tempos, aparecem estudos que contradizem esta linha argumentativa, mas a guerra de propaganda tem agora um campo de batalha feroz na economia política.

Se quisermos escapar a esta abordagem unilateral e nem tampouco seguir a propaganda de Pequim, que conta com abundantes terminais mediáticos e nas organizações de esquerda, é necessário adoptar uma visão dinâmica das contradições do capitalismo global e analisar com sobriedade as múltiplas formas em como os ciclos económico e político se alimentam mutuamente nesta fase da luta interimperialista. Repetir continuamente as mesmas fórmulas durante mais de vinte anos (“A China está à beira de um cataclismo social”, “A China vai entrar numa recessão”, “A China está muito longe dos EUA”), tem o mesmo valor que dizer que a ascensão da extrema-direita deve ser posta em perspetiva porque a classe trabalhadora é muito forte e o campesinato quase não tem peso social. Fórmulas erradas que não se corrigem justamente porque são fórmulas e não análises baseadas numa abordagem dialética.

Desconsiderar o avanço colossal das forças produtivas na China nas últimas décadas e a base material que proporcionou ao Estado e à sua burguesia para implementar a sua agenda imperialista, tem pouco que ver com a teoria marxista. É precisamente negar uma das leis mais marcantes do materialismo histórico: a do desenvolvimento desigual.

“Sob o capitalismo”, escreveu Lenin no seu grande texto sobre o Imperialismo, “é inconcebível uma distribuição de esferas de influência, de interesses, de colónias, etc., a não ser pela força daqueles que nela participam, pela força económica, financeira, militar, etc. E a força daqueles que participam na distribuição muda de forma desigual, uma vez que o desenvolvimento harmonioso das diferentes empresas, trusts, ramos industriais e países é impossível em capitalismo. Há meio século, a Alemanha era uma insignificância comparando a sua força capitalista à da Grã-Bretanha; o mesmo se pode dizer ao compararmos o Japão com a Rússia. Será concebível que dentro de dez ou vinte anos a correlação de forças entre as potências imperialistas permaneça inalterada? É absolutamente inconcebível".1

A China completou rapidamente etapas que outras nações levaram décadas. Este progresso não foi apenas quantitativo mas qualitativo, até se tornar uma potência imperialista capaz de desafiar a supremacia dos Estados Unidos em áreas económicas e geoestratégicas decisivas.

Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky prestaram a maior atenção às mudanças na correlação de forças mundial, especialmente àquelas que indicavam transformações decisivas na luta interimperialista. E não o faziam por mera erudição, mas pelas implicações que estes fenómenos tinham na luta de classes internacional. De que outra forma poderão as forças do marxismo ser educadas e preparadas para intervir no movimento vivo?

Analisaram repetidas vezes o crescimento da economia alemã, especialmente a Guerra Franco-Prussiana e a derrota da Comuna de Paris. Estes últimos acontecimentos, que forjaram o espírito da Primeira Internacional e de toda uma geração de revolucionários, abriram as portas à unificação alemã sob Bismarck e ao desenvolvimento exponencial da sua indústria, das suas finanças, do seu comércio e do seu apetite imperialista.

O desenvolvimento desigual entre Alemanha, França e Grã-Bretanha, e as contradições que gerou na luta pela supremacia no mercado mundial e nas colónias, conduziram à Grande Guerra.

O mesmo aconteceu com a cedência da Grã-Bretanha como potência hegemónica em relação aos Estados Unidos, processo que avançou com força durante a Primeira Guerra Mundial e que se consolidou definitivamente com a Segunda Guerra Mundial. Trotsky escreveu sobre esta questão em numerosos relatórios aos congressos da Terceira Internacional, e até levantou a possibilidade de uma guerra entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha que, em última análise, não ocorreu por uma razão de peso: o governo de Sua Majestade não estava em condições de enfrentar o poder económico e militar de Washington.

Os EUA sofreram um terrível colapso económico em 1929: desemprego em massa, hiperinflação, colapso financeiro, empobrecimento urbano e rural e uma feroz luta de classes. Mesmo assim, a burguesia estado-unidense não sofreu uma guerra dentro das suas fronteiras e desfrutou de condições objectivas incomparavelmente melhores do que os seus concorrentes europeus para superar a grande depressão.

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A China completou rapidamente etapas que outras nações levaram décadas, até se tornar uma potência imperialista capaz de desafiar a supremacia dos Estados Unidos em áreas económicas e geoestratégicas decisivas.

As medidas protecionistas e as desvalorizações competitivas que incentivaram a guerra comercial afetaram profundamente a Alemanha, a Grã-Bretanha e a França, derrubando o Tratado de Versalhes, empobrecendo o velho continente e polarizando-o ao máximo. Os EUA tinham problemas, e não poucos, mas os dos seus adversários eram qualitativamente piores. A classe dominante estado-unidense, apesar das suas divisões internas, acabou por juntar-se a Roosevelt e ao seu New Deal numa política frente populista que afastava a ameaça de revolução. Na Itália, na Alemanha, na Áustria, na Espanha e na França... a burguesia entregou o poder ao fascismo, faltou-lhes o músculo e as gorduras sociais estado-unidenses.

A história oferece-nos o método dialético para interpretar os acontecimentos que transformam o mundo de hoje.

Como já referimos anteriormente, Putin nunca teria ousado dar um passo no campo militar sem ter o apoio de Xi Jinping. Não houve “equidistância calculada” da China, nem a guerra na Ucrânia é apenas um conflito por procuração entre os EUA e a Rússia. Este é um confronto imperialista entre dois blocos com muitas frentes activas.

Um princípio do método marxista é ser concreto e avaliar as tendências de fundo do momento. Pequim está a desafiar com sucesso crescente a governação global de Washington. É um pólo imperialista em ascensão que atrai outras potências regionais que observam como os EUA são um foco de desestabilização contrária aos seus interesses.

Este equilíbrio de forças não foi improvisado de surpresa. Se se pode reduzir a uma causa primária o que explica esta transformação é o crescimento colossal das forças produtivas chinesas num período de crise generalizada do capitalismo ocidental, influenciado também por fatores económicos e políticos. A consolidação de um peculiar sistema de capitalismo de Estado na China tornou-se uma vantagem, pelo menos temporária, sobre os seus adversários.

Podemos apontar três pontos de viragem no progresso do capitalismo chinês: a Grande Recessão de 2008, a pandemia e a guerra imperialista na Ucrânia. A China emergiu mais forte de todas estas provas, desmentindo todas as previsões catastrofistas.

Em janeiro de 2023 muita gente previu milhões de mortes devido ao ressurgimento da pandemia em Pequim e noutras cidades, após o levantamento das duras condições de confinamento. Mas nada disto aconteceu. Alguns analistas mostraram a sua “inteligência” ao preverem o fracasso inevitável da política “Covid 0 num só país”.

Quase um ano antes, em maio de 2022, o semanário The Economist, um dos mais respeitados porta-vozes do capitalismo global, dedicou um espaço semanal a esta questão. No dia 7, denunciou “a loucura do Covid-Zero” e como “as políticas erráticas da China estão a aterrorizar os investidores”. No dia 14 assinalava que “a política de Covid-Zero tem sido uma praga para as empresas chinesas”. E a 26 de maio dedicou um editorial que, sob o título Como Xi Jinping está a prejudicar a economia chinesa, concluiu que “este ano, a China pode ter dificuldade em crescer muito mais rápido que os Estados Unidos pela primeira vez desde 1990, após o massacre perto da Praça de Tiananmen.

Os dados económicos rapidamente contradisseram o The Economist. Em 2022, a China cresceu 3% enquanto os Estados Unidos cresceram 2,1%. Olhando mais para trás, à medida que as potências capitalistas ocidentais afundavam na recessão em 2020, o capitalismo de Estado da China conseguiu manter um crescimento de 2,2%. Em 2021, quando ocorreu a recuperação geral, os Estados Unidos cresceram 5,9%, mas a China cresceu 8,1%.

Só compreendendo corretamente a natureza da burocracia ex-estalinista chinesa e as características especiais do seu capitalismo é que podem se entender as razões da política de “Covid-Zero”. No final de 2019, a direção do PCC foi confrontada com o surto da pandemia na cidade de Wuhan. As suas primeiras tentativas de a erradicar sem alarmar o público falharam miseravelmente. A pandemia só poderia ser parada se fossem tomadas medidas drásticas, nunca antes aplicadas. A autoridade do PCC estava seriamente ameaçada. Perante este dilema, a cúpula do partido e do Estado utilizaram todos os seus recursos de poder para minimizar o risco de uma catástrofe sanitária, e, desta forma, por mais paradoxal que possa parecer, manter em funcionamento a sua economia.

O resultado foi muito superior ao das políticas aplicadas no Ocidente, tanto no que toca a limitar o número de mortes como em termos de registos económicos. As exportações chinesas mantiveram o seu dinamismo durante 2020, com um crescimento de 3,6%, e nesse mesmo ano estabeleceram as bases para a fulgurante expansão de 2021, quando as suas vendas ao exterior cresceram quase 30%.

Este conjunto de elementos deu a Xi Jinping e ao PCC maior estabilidade social e política em comparação com os governos dos EUA e da UE. Respondendo aos mecanicistas e empiricistas: os fatores políticos afetam diretamente a economia e vice-versa, ou parafraseando Lenin, a política é economia concentrada. As estreitas relações entre os processos políticos e económicos tendem a deixar uma marca imediata na consciência e na luta de classes.

A relativa estabilidade interna na China tornou-se um factor económico de primeira ordem e vice-versa. O avanço sustentado da produção e das exportações está a gerar um mercado interno mais amplo, e o regime permitiu-se fazer concessões salariais muito acima do que acontece nos EUA, na UE e nas restantes economias. Não é uma opinião dos marxistas, mas do último relatório da OIT (Relatório Global sobre os Salários 2022-2023): de 2008 a 2022, os salários reais dos trabalhadores chineses quase triplicaram, multiplicando 2,6 vezes.

Recapitulemos alguns números sobre a evolução da economia chinesa: o PIB em 2008 foi de 4,5 biliões de dólares, em 2012 foi de 8 biliões de dólares e em 2022 foi de 17,1 biliões de dólares. Se no ano 2000 a formação bruta de capital fixo se estimava ser 400 mil milhões de dólares, em 2018 atingiu 5,7 biliões, superando o recorde dos Estados Unidos, que se situou em 4,3 biliões (IndexMundi).

Não é um detalhe que o ponto de inflexão tenha ocorrido precisamente entre 2008 e 2010, quando as economias estado-unidense e europeia sofreram duramente com a Grande Recessão.

No que diz respeito à contribuição da China para o crescimento económico global, os dados são esmagadores: em 1978 a sua contribuição foi de 3,1%, em 2018 de 27,5%, e em 2021 foi de 33%.2 Segundo um estudo da JP Morgan Economic Research, em 2022 os EUA continuavam a ser a maior economia com um peso de 26,6% no PIB global. Mas a China diminuiu a diferença e atingiu 20,5%. A UE está em terceiro lugar com 16,8%. O dragão asiático ultrapassou a zona euro em 2019 e só aumentou a diferença desde então. O Japão (5,7%) ocupa o quarto lugar.

Entre 2020, 2021 e 2022, a economia chinesa cresceu, em taxas acumuladas, quase nove pontos mais que a dos Estados Unidos. Isto explica a fúria da propaganda de Washington! Segundo um estudo da Bloomberg Economics, baseado em dados do FMI, a expansão do PIB chinês nestes cinco anos foi de 22,6%, a da Índia de 12,9%, enquanto a dos EUA apenas 11,3%.

Ao analisar os setores que impulsionam a economia mundial e que serão ainda mais cruciais para o modo de produção capitalista nas próximas décadas, a situação da China mostra semelhanças com a dos EUA quando terminou a Segunda Guerra Mundial.

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O avanço sustentado da produção e das exportações está a gerar um mercado interno mais amplo, e o regime permitiu-se fazer concessões salariais muito acima do que acontece nos EUA, na UE e nas restantes economias.

Por exemplo, os resultados da produção e exportação de automóveis na China, e não apenas de automóveis eléctricos, são extraordinários. Vendas totais em 2022: 26.860.000 unidades (+2,1%); automóveis elétricos a bateria (BEV): 5.360.000 (+81,6%), atingindo uma quota de mercado de 20%; Híbridos plug-in: 1.500.000 (+151,6%), atingindo uma quota de mercado de 5,5%.

Em 2022, as exportações de automóveis da China atingiram um recorde de 3 milhões de unidades, mais 54,4% do que em 2021, das quais 679 mil eram elétricas ou híbridas plug-in, representando um aumento de 120% face ao ano anterior. De acordo com um estudo recente da Moody's, a China foi responsável por 65% dos 8 milhões de vendas de BEV registadas em todo o mundo no ano passado.

Os números que já se conhecem para 2023, ano fatídico para a economia chinesa segundo a imprensa capitalista de Londres e Washington, são ainda melhores: a China exportou 1,07 milhões de veículos no primeiro trimestre, o que representa um crescimento homólogo de 58,3%, tornando-se o maior exportador de automóveis do mundo depois de ultrapassar o seu vizinho Japão.

O mercado de carros elétricos é dominado pela China. A indústria e o Estado trabalham a passos largos para controlar também o setor das baterias e ampliar de forma decisiva a sua autonomia. “A empresa chinesa Gotion High-Tech desenvolveu uma bateria para veículos elétricos que permite baixar o preço deste elemento (é a parte mais cara deste tipo de automóveis) e o carro pode percorrer 1.000 quilómetros com um único carregamento.”3

Tal é o impulso e a vantagem dos fabricantes chineses que marcas europeias históricas procuram a sua ajuda. É o caso da Volkswagen, que anunciou a aquisição de 4,99% da empresa chinesa XPeng por 700 milhões de dólares: “Com esta operação fica garantido o acesso à sua tecnologia e aos componentes e elementos básicos dos seus carros elétricos. Ralf Brandstätter, membro do Conselho do Grupo Volkswagen na China, garantiu; '...Com a XPeng, agora temos outro parceiro forte que é um dos fabricantes líderes na China em áreas tecnológicas chave’...”.

O carro elétrico tornou-se o símbolo da transição produtiva do século XXI devido às suas poderosas implicações em todos os segmentos da economia mundial. É a linguagem do aço, do ferro, da tecnologia e da produtividade do trabalho que está envolvida. É por isso que a classe dominante estado-unidense e europeia estão tão preocupadas.

Outra questão fundamental surge também à luz destes dados. Existe uma teoria, cada vez mais em voga nos círculos académicos burgueses, que alerta para um “perigoso processo de desglobalização e fragmentação do mercado mundial”. Alguns “teóricos” marxistas preguiçosos voltaram a comprar este discurso.

O argumento sobre a ameaça da “desglobalização” é, na realidade, uma ilusão para esconder que a guerra económica contra o gigante asiático está a ser um fracasso. São precisamente as enormes dificuldades em romper com uma economia capitalista globalizada e interligada que alimentam ao máximo o conflito entre as potências.

Trotsky abordou esta questão no seu artigo O nacionalismo e a economia: “O desenvolvimento económico da humanidade, que eliminou o particularismo medieval, não se deteve nas fronteiras nacionais. O crescimento do intercâmbio global fez-se em paralelo à formação das economias nacionais. A tendência deste desenvolvimento expressou-se na mudança do centro de gravidade do mercado interno para o mercado externo. […] O choque entre estas tendências levou à guerra… [que] tentou resolver, com métodos letais e bárbaros, um problema de desenvolvimento histórico progressivo: a organização da economia no terreno preparado pela divisão internacional do trabalho… A crise atual, na qual se sintetizam todas as crises capitalistas passadas, é sobretudo a crise da economia nacional.”4

Esta crise da economia nacional resolve-se no mercado mundial através de uma luta até à morte, tanto económica como militar. É por isso que a guerra é “um estágio inevitável do capitalismo, uma forma de vida capitalista tão legítima quanto a paz”.5

Em Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, Lenine explica como esta dinâmica funciona: “O capital financeiro e os trusts não diminuem, mas antes aumentam as diferenças na taxa de crescimento das diferentes partes da economia mundial. E uma vez alterada a correlação de forças, que outros meios existem, sob capitalismo, para resolver as contradições além da força?... Que outros meios, além da guerra, podem existir sob capitalismo para eliminar as discrepâncias existentes entre o desenvolvimento das forças produtivas e a acumulação de capital, por um lado, e a distribuição de colónias e “esferas de influência” entre o capital financeiro, por outro?”6

Temos de ser concretos se não quisermos ser vítimas de propaganda e errar nas nossas análises. As cadeias globais de produção e abastecimento são mais extensas do que em qualquer outra fase da história do capitalismo, para não mencionar as cadeias financeiras globais que funcionam como vasos de comunicação. A economia global é uma realidade avassaladora. A questão a analisar é outra: a intensificação da batalha pela hegemonia mundial, que provoca inevitavelmente guerras comerciais e uma tendência para o nacionalismo económico, está a resolver-se contra os interesses do imperialismo ocidental.

O aspeto central não é tanto o recuo da globalização, mas a mudança da direção nessa globalização, vítima de uma transição abrupta do eixo anglo-saxónico (e alemão) para aquele liderado pela China. E embora esta nova direção seja prejudicial para o Ocidente, nenhum país pode desvincular-se devido às estreitas relações que foram forjando nos últimos trinta anos.

Os dados sobre os fluxos produtivos, financeiros e comerciais dos EUA e da China comprovam o que dizemos. Apesar de todas as tentativas de impor limites às suas trocas, das novas tarifas aprovadas pela administração Trump ou da manutenção da guerra comercial sob a administração Biden, os laços entre ambas as economias não se enfraqueceram como os factos teimosamente demonstram.

É uma confirmação do desenvolvimento dialético da economia mundial: o todo tornou-se algo muito maior que a soma das partes, adquirindo uma dinâmica própria onde as causas se transformam em efeitos e os efeitos em causas.

Temos sido muito críticos com o The Economist, uma revista de consulta obrigatória que também lemos com atenção. Quando os chefes de redação estão de férias, alguém foge à disciplina e publica um material mais elaborado. No dia 10 de agosto, num texto intitulado Joe Biden’s China strategy is not working, faziam-se as seguintes observações:

“A 9 de agosto, o presidente Joe Biden revelou a sua mais recente arma na guerra económica dos Estados Unidos com a China. Novas regras controlarão os investimentos feitos no exterior pelo setor privado, e proíbem-se aqueles destinados às tecnologias mais sensíveis na China. A utilização de tais restrições pelo mais forte defensor do capitalismo no mundo é o mais recente sinal da profunda mudança na política económica dos Estados Unidos, à medida que enfrenta a ascensão de um rival cada vez mais assertivo e ameaçador (…) As consequências deste novo pensamento estão agora a tornar-se claras. Infelizmente, não oferece nem resiliência nem segurança.

As cadeias de abastecimento tornaram-se mais emaranhadas e opacas à medida que se foram adaptando às novas regras. E se olharmos com atenção, fica claro que persiste a dependência dos Estados Unidos de fatores produtivos críticos chineses. O que é mais preocupante é que esta política teve o efeito perverso de aproximar os aliados dos EUA da China.

Tudo isto pode parecer surpreendente porque, à primeira vista, as novas políticas parecem um sucesso retumbante. Os laços económicos diretos entre a China e os Estados Unidos estão a enfraquecer. Em 2018, dois terços das importações estado-unidenses de um grupo de países asiáticos “de baixo custo” vinham da China; no ano passado vinha pouco mais da metade. Em vez disso, os Estados Unidos recorreram à Índia, ao México e ao Sudeste Asiático.

Os fluxos de investimento também estão a ajustar-se. Em 2016, as empresas chinesas investiram uns espantosos 48 mil milhões de dólares nos Estados Unidos; seis anos depois, o valor caiu para apenas 3,1 mil milhões. Pela primeira vez num quarto de século, a China deixou de ser um dos três principais destinos de investimento para a maioria dos membros da Câmara de Comércio estado-unidense na China.

Contudo, se aprofundarmos, descobrimos que a dependência dos EUA em relação à China permanece intacta. Os Estados Unidos podem estar a redirecionar a sua procura da China para outros países. Mas a produção nesses locais depende agora mais do que nunca dos fatores produtivos chineses. À medida que as exportações do Sudeste Asiático para os Estados Unidos aumentaram, por exemplo, as importações desta região de factores produtivos intermédios da China dispararam. As exportações chinesas de peças automóveis para o México, outro país que beneficiou da redução de riscos dos EUA, duplicaram nos últimos cinco anos. Um estudo publicado pelo FMI conclui que mesmo nos setores industriais avançados, onde os Estados Unidos estão mais dispostos a afastar-se da China, os países que fizeram as maiores incursões no mercado dos EUA são aqueles com laços industriais mais estreitos com a China. As cadeias de abastecimento tornaram-se mais complexas e o comércio tornou-se mais caro. Mas o domínio da China não diminuiu.

O que se está a passar? Nos casos mais flagrantes, os produtos chineses são simplesmente reembalados e enviados para os Estados Unidos através de países terceiros. No final de 2022, o Departamento de Comércio dos EUA descobriu que quatro grandes fornecedores de energia solar, com sede no Sudeste Asiático, adicionavam um processamento tão pequeno a produtos que de outra forma seriam chineses que estavam, de facto, apenas a contornar as tarifas sobre os produtos chineses. Noutras áreas, como os metais de terras raras, a China continua a fornecer fatores produtivos difíceis de substituir.

No entanto, o mecanismo é geralmente benigno. Os mercados livres estão simplesmente a adaptar-se para encontrar a forma mais barata de fornecer bens aos consumidores. E, em muitos casos, a China, com a sua enorme força de trabalho e logística eficiente, continua a ser o fornecedor mais barato. As novas regras dos Estados Unidos têm o poder de redirecionar o seu próprio comércio com a China. Mas não podem livrar toda a cadeia de abastecimento da influência chinesa.

Grande parte deste desacoplamento é, então, falsa. Pior ainda, da perspectiva de Biden, a sua abordagem também está a aprofundar os laços económicos entre a China e outros países exportadores. Ao fazê-lo, opõe perversamente os seus interesses aos dos Estados Unidos. Embora os governos estejam preocupados com a crescente assertividade da China, as suas relações comerciais com a maior economia da Ásia estão a aprofundar-se. A Parceria Económica Abrangente Regional (RCEP), um acordo comercial assinado em novembro de 2020 por muitos países do Sudeste Asiático e pela China, cria uma espécie de mercado único precisamente para bens intermédios cujo comércio cresceu nos últimos anos.

Para muitos países mais pobres, receber investimento e bens intermédios chineses e exportar produtos acabados para os Estados Unidos é uma fonte de emprego e prosperidade. A relutância dos Estados Unidos em apoiar novos acordos comerciais é uma das razões pelas quais o país é por vezes visto como um parceiro pouco fiável. “Se lhes pedissem que escolhessem entre a China e os Estados Unidos, é possível que não escolhessem o lado do Tio Sam.”

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A ideia da ameaça de "desglobalização" pretende esconder que a guerra económica contra a China está a ser um fracasso. São as dificuldades em romper com uma economia capitalista globalizada que alimentam o conflito entre as potências.

É muito difícil desacoplar-se do país que é o primeiro exportador e o segundo importador do mundo. Um relatório sobre o comércio externo da China do Banco Santander (setembro de 2023) fornece números convincentes: a integração da China no mercado mundial é tal que o seu comércio externo representou 37% do PIB nacional em 2022. "Considerando todo o ano de 2022, o excedente comercial do país aumentou 31%, atingindo 876,91 mil milhões de dólares, o valor mais elevado desde que os registos começaram em 1950, já que as exportações aumentaram 7% e as importações apenas 1% (Administração Geral das Alfândegas da China, 2023).”

A 15 de novembro de 2020, a China assinou a Parceria Económica Abrangente Regional (RCEP) com outros 14 países do Indo-Pacífico. O acordo mais amplo da história, abrangendo 30% da economia mundial, incluindo Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietname e parceiros de comércio livre da ASEAN. O RCEP abrange bens, serviços, investimentos e cooperação económica e técnica.

Também investiu milhares de milhões de dólares num Corredor Económico China-Paquistão e no porto árabe paquistanês de Gwadar, uma ferramenta necessária para facilitar a transmissão de petróleo do Golfo para as suas províncias do noroeste. E, além de receber uns espantosos 1,7 milhões de barris de petróleo por dia da Arábia Saudita, obtém até 1,2 milhões de barris por dia do Irão, contornando as sanções dos EUA.

O IDE aumentou 8% na China em 2022, atingindo um valor de 189.130 milhões de dólares: “A indústria transformadora registou um crescimento no fluxo de IDE de 46,1% em termos anuais, subindo para 323,7 mil milhões de yuans em 2022, enquanto que as indústrias de alta tecnologia aumentaram 28,3% em relação a 2021. Durante este período, o investimento da República da Coreia, da Alemanha e do Reino Unido aumentou 64,2%, 52,9% e 40,7%, respetivamente, enquanto o da União Europeia apresentou um aumento homólogo acentuado de 92,2%.”

Estes números demonstram o falhanço da estratégia dos EUA em tentar romper as relações económicas e comerciais entre a Europa e a China.

A imprensa estado-unidense não deixa de destacar que nos primeiros cinco meses de 2023, o IDE na China diminuiu 5,6% em termos homólogos, fixando-se em 84.350 milhões de dólares. Tendo em conta os níveis dos quais partimos, e tendo em conta a situação recessiva da Alemanha, da Grã-Bretanha e a estagnação dos Estados Unidos, este registo não é de estranhar. O mais significativo é que nestes mesmos primeiros cinco meses, o investimento direto não financeiro da China no exterior tenha aumentado 16,1% em relação ao mesmo período do ano passado, atingindo 51,78 mil milhões de dólares.

Depois da pandemia, a China tornou-se o principal credor multilateral do mundo. Lidera empréstimos a países em desenvolvimento e, embora tenha sido o maior detentor de títulos norte-americanos durante mais de uma década, com pico em 2013 com 1,3 biliões de dólares, após a escalada das tensões com o governo Trump em 2019, Pequim reduziu os seus haveres para 870 mil milhões, apenas superados pelos 1,1 biliões detidos por Tóquio. Mas o essencial é que a interdependência mútua não diminui substancialmente.

Os receios do imperialismo estado-unidense não são propaganda, estão perfeitamente fundamentados e a informação que é divulgada a cada momento reforça-os.

De acordo com um relatório publicado em março deste ano pelo Australian Strategic Policy Institute (ASPI), a China lidera a investigação em tecnologias do futuro. A ASPI indica que a China supera os Estados Unidos e os restantes países na investigação de 37 das 44 tecnologias-chave para a inovação e crescimento em áreas como defesa, exploração espacial, robótica, biotecnologia, tecnologia quântica e inteligência artificial.

A China também ultrapassa os EUA em até oito campos relacionados com a indústria energética: hidrogénio para geração de energia, supercapacitores, baterias elétricas, energia fotovoltaica, gestão de resíduos nucleares, biocombustíveis, energia nuclear e tecnologia de energia direta (lasers, microondas e ondas sonoras). Os EUA continuam a ser líderes na computação quântica, mas a China já os ultrapassou na criptografia aplicada a este setor e nas comunicações e sensores quânticos.

Recentemente, os EUA convenceram o Japão e os Países Baixos a aderirem ao veto de exportar para a China as máquinas necessárias para fabricar chips de última geração. Estes processadores são essenciais, entre outras coisas, para o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial (IA). Mas as empresas que hoje têm mais patentes relacionadas com IA são as chinesas Tencent e Baidu, e superam empresas como IBM, Microsoft ou Alphabet (Google).

Os EUA ainda são líderes em supercomputadores, processadores de próxima geração e processamento de linguagem natural (necessário para avanços como o ChatGPT), mas a diferença é cada vez menor.

A China ultrapassou os EUA em patentes anuais pela primeira vez em 2011. 10 anos depois, segundo dados da ONU, já duplica o número de patentes.

A China supera os Estados Unidos em densidade de robôs e no desenvolvimento de tecnologias críticas. Também lidera a produção de terras raras e condiciona a indústria estado-unidense: “A segunda potência económica mundial domina o mercado de terras raras e as suas cadeias de valor. A sua hegemonia é quase indiscutível numa corrida global sem tréguas. O relatório da USGS Mineral Raw Materials mostra que os EUA estão longe de garantir o suficiente fornecimentos de materiais metálicos essenciais para a sua transição energética e, em particular, a fabricação de veículos elétricos altamente subsidiados ou a reindustrialização do seu nevrálgico setor de chips e componentes eletrónicos.”

Não há dúvida de que a luta entre a China e os EUA por matérias-primas estratégicas como o silício ou o germânio é até à morte. E é assim porque faz parte da batalha pelo domínio do mercado de semicondutores, uma luta que não indica qualquer retrocesso da globalização, mas antes mostra que o controlo deste mercado será decisivo para a supremacia tecnológica e económica do futuro.

O governo de Xi Jinping planeia subsidiar a sua indústria de chips com 143 mil milhões. O governo Democrata, através da Inflation Reduction Act, pretende mobilizar 465 mil milhões de dólares para modernizar a sua indústria obsoleta. Por outro lado, com a Chips and Science Act, injetará outros 280 mil milhões em centros de fabricação de chips e semicondutores.

A administração Biden reforçou, como já referimos, as restrições à exportação de semicondutores. Em outubro do ano passado, o Departamento do Comércio proibiu a transferência para a China de unidades avançadas de processamento gráfico (GPU), utilizadas para alimentar aplicações de IA, bem como de qualquer equipamento estado-unidense utilizado no fabrico de semicondutores avançados.

É absolutamente verdade que a China depende de tecnologia estrangeira, quase toda controlada pelos seus rivais geopolíticos, Taiwan, Japão, Coreia do Sul ou Estados Unidos. Mas o regime de Pequim já tomou medidas sobre o assunto ao lançar o plano Made in China 2025, com o objetivo de reduzir as importações de chips para a China dos 85% registados em 2015 para 30% em 2025.

Por outro lado, os problemas dos EUA com o mercado de microchips também são evidentes. E devem-se à estreita inter-relação desta indústria com a produção que as multinacionais norte-americanas desenvolveram na…China.

Foi o que referiu o CEO da Nvidia, Jensen Huang, a mais valiosa empresa estado-unidense de semicondutores do mundo: “Em declarações ao Financial Times, Huang destacou que as restrições à exportação adotadas pelo governo de Joe Biden deixam a empresa californiana com 'as mãos atadas', já que não pode vender chips num dos principais mercados. “Se a China não puder comprar aos Estados Unidos, eles próprios construi-los-ão. Portanto, os Estados Unidos precisam de ter cuidado. A China é um mercado muito importante para a indústria tecnológica' (…) 'Se nos privarem do mercado chinês, não temos uma contingência. Não existe outra China, existe apenas uma China.' Huang observou que as restrições das vendas à China iriam “impossibilitar o Chip Act”, aludindo ao pacote de 52 mil milhões de dólares implementado por Biden para promover a construção de mais instalações de produção de semicondutores no país. “Se a indústria tecnológica estado-unidense exigir um terço a menos de capacidade, ninguém precisará de fábricas estado-unidenses, estaremos a nadar em fábricas”.

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O capitalismo de Estado chinês tem os seus próprios problemas e não pode superar as contradições inerentes ao processo de acumulação. Assinalamos os seus pontos fortes em comparação com os seus concorrentes e as vantagens qualitativas de que goza o regime de capitalismo de Estado.

O capitalismo de Estado chinês tem os seus próprios problemas, e não são menores. A dívida total da China atingiu níveis sem precedentes: se somarmos a dívida pública, a das famílias e a das empresas, equivale a 295% do PIB. A bolha imobiliária também se espalha, levando a falências multimilionárias.7 A Evergrande é o caso mais notável. O grupo já não está cotado em bolsa e está imerso num processo de reestruturação controlado diretamente pelo Estado. No mês passado publicou as contas dos seus últimos dois anos com perdas superiores a 72 mil milhões de euros, declarando falência nos EUA. A Country Garden, outra grande empresa imobiliária, também está à beira do colapso.

O problema é grave, mas a crise da Evergrande arrasta-se desde 2021 e até agora o Governo de Pequim conseguiu controlá-la. Sem dúvida, um dos grandes desequilíbrios estruturais é que uma parte muito importante desta actividade imobiliária tem sido financiada com dívidas dos governos locais e municipais que são abastecidas pelo chamado shadow banking, o setor financeiro desregulamentado, e que atinge um volume de três biliões de dólares. Parece de loucos, mas se compararmos com o que move este setor nos EUA e na Europa, então quem tem um problema dez vezes maior é o Ocidente.

O desemprego jovem ultrapassa os 21% e os desequilíbrios entre o campo e a cidade não foram resolvidos. Mas acima de tudo, a sua dependência das exportações de países que atravessam uma situação de recessão e estagnação, como a Alemanha, os EUA, a Itália e outros, acrescenta incerteza. Daí a enorme diversificação dos investimentos chineses e a procura de novos mercados para matérias-primas, produção agroalimentar, mineração, etc., na África, na América Latina e na Ásia.

Pensar que o capitalismo chinês pode superar as contradições inerentes ao processo de acumulação é um absurdo. Não é isso que está em questão. O que queremos situar é o contexto em que a economia chinesa opera, os seus pontos fortes em comparação com os seus concorrentes e as vantagens qualitativas de que goza o seu regime de capitalismo de Estado, mesmo que temporariamente.

Ainda não substituiu os Estados Unidos como superpotência imperialista dominante e, se esse processo se der, será à custa de batalhas ainda mais sangrentas. Mas a guerra já começou. O imperialismo estado-unidense conta com pontos sólidos a seu favor. A sua moeda é hegemónica em comparação com outras divisas: o dólar está envolvido em quase 90% das transações globais e representa quase 60% das reservas cambiais dos bancos centrais, embora tenha atingido cerca de 70% em 1999.8 Mas existem planos e acordos comerciais, nada desprezáveis, para alterar esta tendência. É claro que este ainda é um volume modesto em relação ao total, mas a situação pode acelerar como já aconteceu noutros campos.

A Grande Recessão de 2008, a pandemia e a guerra na Ucrânia deixaram claro que o desenvolvimento das forças produtivas na China não parou, abrandou mas sem sofrer uma viragem negativa. A questão é se a China está em melhor posição do que os seus concorrentes imperialistas para enfrentar esta era de crises e guerras regionais. Responder a esta pergunta requer uma abordagem séria e não clichês, por mais que impactem um público desinformado.

IV. Estagflação. Das greves económicas às lutas políticas

O último Relatório de Perspectivas Económicas do Banco Mundial (junho de 2023) afirma: “As lições da história económica são contundentes. Os rápidos aumentos das taxas de juro, como os que ocorreram nos Estados Unidos no último ano, estão correlacionados com uma maior probabilidade de crises financeiras nos países emergentes e em desenvolvimento (…) E se a actual tensão bancária nas economias avançadas se traduzir em turbulência financeira generalizada que afecta os países emergentes e em desenvolvimento, o pior cenário teria sido alcançado: a economia mundial experimentaria uma recessão profunda no próximo ano.”

As reflexões anteriores indicam a grande inquietação que agita a burguesia. O economista-chefe do BM, Indermit Gill, encarregado de apresentar as novas previsões, transmitiu notícias pouco lisonjeiras. Na Zona Euro, a previsão para 2023 é de um raquítico aumento de 0,4% do PIB. No caso dos EUA, um crescimento de 2,1% em 2022 passaria a 1,1% em 2023. Números muito decepcionantes, se não abertamente negativos. Curiosamente, ou nem tanto, a mesma organização sugere que a China irá acelerar o seu crescimento este ano de 3,5% (previsão de janeiro) para 5,5% (previsão de junho).

A atualização de outubro das Perspetivas Económicas do FMI mostra mais otimismo: a previsão para os EUA é revista em alta, cresceria 2,1% em 2023, e 1,5% em 2024. Quanto à Zona Euro, o aumento seria de 0,7% em 2023 e 1,2% em 2024. O comportamento na China é diferente: em 2023 atingiria um crescimento de 5%, e em 2024 de 4,2%.

Observando à lupa as principais economias da UE, as perspectivas são bastante más. A locomotiva alemã entraria em recessão, -0,5% em 2023 e registaria um pequeno aumento de 0,9% em 2024. Em França 1% e 1,3% para este ano e para o próximo. Na Itália, 0,7% e 0,7%, respetivamente. No caso da Grã-Bretanha os números também são dolorosos: 0,5% e 0,6%.

Outra economia pertencente aos BRICS, a Índia, experimentaria um aumento significativo de 6,3% em 2023, repetindo o mesmo valor em 2024. Para a Rússia, e isto é surpreendente, o FMI prevê para 2023, em plena guerra, um crescimento do PIB de 2,2%, o dobro do francês e muito longe do previsto para a Alemanha.

O título do relatório do FMI é evocativo: A recuperação mundial está a abrandar num contexto de divergências crescentes entre setores económicos e regiões. Mas poderia ser muito mais claro, por exemplo: a economia ocidental está a caminhar de forma constante para a recessão e a China mantém taxas de crescimento que duplicam e triplicam as dos EUA e da Europa.

Descontrolo financeiro e lucros recordes. É uma loucura, mas tem a sua lógica

O descontrolo inflacionista e a política de aumento das taxas de juro estão a introduzir material altamente combustível na economia ocidental, reduzindo drasticamente as perspetivas de recuperação e aproximando a possibilidade de uma nova recessão devastadora. Além disso, a turbulência financeira não foi resolvida nem nos EUA nem na Europa.

O Banco Central Europeu (BCE) publicou uma nota no final de maio alertando para os perigos do crescimento das Instituições Financeiras Não Bancárias ou shadow banking. Os dados publicados são assustadores: os bancos da Zona Euro recorrem a estas empresas para obterem quase 14% do seu financiamento e os cinco maiores da Zona Euro representam cerca de 50% da exposição total a este tipo de empréstimos e títulos. Contem-nos mais sobre os riscos na China.

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A concentração e a monopolização do capital atingiram um nível sem precedentes, paralelamente à estagnação e às contra-reformas sociais que alimentam a polarização económica, social e política sofrida pelas grandes potências ocidentais desde a Grande Recessão de 2008.

O sistema bancário na sombra detém 28% dos títulos de dívida dos bancos europeus em circulação na Zona Euro e, de acordo com a nota do BCE, os bancos negoceiam mais de 20% dos seus riscos nacionais brutos, principalmente com fundos de investimento e em derivados. O curioso é que é o próprio BCE quem denuncia esta realidade, precisamente a instituição que deve garantir a segurança do sistema. Esta é a hipocrisia do capital. O FMI também está cansado de alertar que o sistema bancário paralelo representa quase 50% do financiamento global, cerca de 239 biliões de dólares. E então? Enquanto uma minoria de plutocratas continuar a controlar o sistema e a enriquecer obscenamente é para continuar em frente.

É uma loucura autêntica. Na verdade, alguns economistas comentam que “o valor dos empréstimos e garantias nas mãos dos bancos é cerca de 2,2 biliões de dólares inferior ao valor contabilístico dos seus balanços. Esta queda no valor coloca 186 bancos em risco de falência se metade dos seus depositantes assustados decidirem levantar o seu dinheiro.”

Depois de os EUA, a Grã-Bretanha, a UE e o Japão terem tentado ultrapassar a crise da Covid-19 seguindo as receitas de 2007-2008, o caruncho espalhou-se. As consequências da injecção de mais de 12 biliões de dólares em programas públicos de resgate de bancos e grandes monopólios capitalistas entre 2020 e 2021 tornaram-se visíveis.9 Como observámos, apenas uma pequena parte desta massa de capital acabou na economia real, enquanto a maior parte foi dedicada à especulação financeira no mercado de dívida e à recompra de ações, engordando a bolha especulativa e inflacionária.

Um exemplo brutal desta “loucura” é o que acontece no mercado dos cereais:

“A oferta mundial de trigo (tanto a produção total como o volume comercializado) manteve-se constante desde o início da guerra ucraniana. O Sistema de Informação do Mercado Agrícola, administrado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, incorpora dados do Conselho Internacional de Cereais para calcular os volumes de oferta, de consumo e de comércio. Entre julho de 2021 e junho de 2022 — período em que os preços do trigo dispararam — a produção global aumentou cinco milhões de toneladas, enquanto o volume comercializado cresceu três milhões de toneladas. Durante o mesmo período, as reservas aumentaram ligeiramente (três milhões de toneladas).”

O mais curioso é que a oferta total de trigo (ou seja, o volume de produção mais as reservas iniciais) superou o consumo em nada menos que 275 milhões de toneladas. Este excedente desmente a narrativa oficial de uma escassez global. Da mesma forma, estima-se que a oferta global tenha superado a procura entre julho de 2022 e junho de 2023, indicando que esta é uma tendência consolidada.

Qual foi então a causa do aumento dos preços do trigo? Para responder a esta pergunta temos que seguir o rasto do dinheiro. O mercado mundial de cereais funciona como um oligopólio, no qual as quatro principais distribuidoras — Archer-Daniels-Midland, Bunge (que recentemente se fundiu com a Viterra), Cargill e Louis Dreyfus — controlam mais de 70% do mercado, e a Glencore outros 10%.

Nas fases iniciais da guerra na Ucrânia, especialmente entre março e junho de 2022, os quatro grandes comerciantes de cereais obtiveram receitas e lucros recordes. A receita anual da Cargill aumentou 23%, para 165 mil milhões de dólares, enquanto os lucros da Louis Dreyfus cresceram 80%. Estes aumentos refletiam aumentos de preços que não correspondiam à procura no mundo real ou à dinâmica da oferta.

Além disso, os mercados de futuros de cereais registaram uma atividade frenética entre abril e junho de 2022. Os investidores financeiros, incluindo fundos de pensões, aumentaram a sua percentagem de posições de longa duração de 23% em maio de 2018 para 72% em abril de 2022. Foi relatado que dez fundos de cobertura "impelidos pelos ventos favoráveis" ganharam 1,9 mil milhões de dólares ao capitalizar o forte aumento dos preços dos alimentos causado pela invasão russa da Ucrânia. Em vez de impedir ou conter estas manobras financeiras, os reguladores dos EUA e da Europa permitiram a sua continuação à vontade.”

Estas são as causas que desencadearam a fome no mundo: um total de 258 milhões de pessoas em 58 países sofreram de insegurança alimentar aguda em 2022 e precisam de ajuda urgente, 65 milhões a mais do que em 2021. Mas o que importa a fome e a pobreza se os lucros empresariais e bancários bateram todos os recordes em 2022 e estão no bom caminho para fazer o mesmo em 2023?10

A concentração e a monopolização do capital atingiram um nível sem precedentes, paralelamente à estagnação e às contra-reformas sociais. Estas são as condições que alimentam a polarização económica, social e política sofrida pelas grandes potências ocidentais desde a Grande Recessão de 2008.

A fratura estado-unidense

O declínio do imperialismo norte-americano é um reflexo precisamente da enorme fratura social que atravessa o país, da decomposição dos seus serviços públicos, da desindustrialização e do empobrecimento massivo, de uma epidemia de drogas descontrolada e dos índices de violência típicos de um país em guerra. No meio desta barbárie, uma elite de multimilionários, cada vez mais ricos e com poder omnipresente, desprezam totalmente o sofrimento de milhões de cidadãos.

Analisamos os números dessa podridão em artigos e declarações, mas alguns são suficientes para destacar o momento que atravessa a sociedade norte-americana.

A taxa de poupança dos estado-unidenses caiu entre 2021 e 2023 de 20,4% para 3,5%, devorada pela inflação. De acordo com dados provisórios dos Centros de Controlo de Doenças, 49.500 pessoas cometeram suicídio em 2022, um novo recorde. E, considerando relatórios fornecidos por 300 entidades de ajuda humanitária, havia 577.000 pessoas sem-abrigo nos Estados Unidos em outubro de 2023.11

A prosperidade e o sonho americano tornaram-se o pesadelo de milhões de pessoas. E a administração democrata, que prometeu reanimá-lo, fracassou manifestamente. Sem oferecer reformas consistentes que possam aliviar o cataclismo social, seguindo obstinadamente uma política nacionalista e imperialista cujos resultados são visíveis, Biden e os seus estão a abrir caminho para que as forças da reacção e da extrema-direita tenham a possibilidade de reocupar a Casa Branca.

Obviamente, o crescimento da extrema-direita e o seu controlo do Partido Republicano, que responde a um processo com amplas raízes sociais e políticas, e no qual estão diretamente envolvidos setores da classe dominante, ocorre juntamente com uma explosão de lutas radicalizadas dos trabalhadores. São as duas faces da polarização. A mudança é tão acentuada que muitos comentadores alertam insistentemente para a ameaça de um conflito civil.

Primeiro foram as manifestações massivas contra o assassinato racista de George Floyd, um estalido social e político que abalou centenas de cidades e foi fundamental para a derrota de Trump em Novembro de 2020. A partir daí, e reflectindo a viragem à esquerda de um setor muito grande da juventude trabalhadora, o movimento em direcção à sindicalização e à acção militante intensificou-se.

A classe trabalhadora norte-americana está a passar por mudanças internas significativas. Está a rejuvenescer, e as duras condições de exploração e precariedade a que está sujeita, os seus salários cada vez mais reduzidos num contexto de aumentos de preços inacessíveis, criaram um terreno fértil para uma onda de lutas sindicais e para o crescimento da organização. Os exemplos são abundantes.

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O declínio do imperialismo norte-americano é um reflexo precisamente da enorme fratura social que atravessa o país. O empobrecimento massivo contrasta com a existência de uma elite de multimilionários mais rica e poderosa a cada dia.

A vitória na formação do primeiro sindicato na Amazon em Nova York marcou um ponto de partida. A iniciativa estendeu-se a outros setores e rapidamente chegaram as greves construídas a partir de baixo com força e determinação combativa, apesar da atitude fura-greves das burocracias sindicais e do Governo democrata.

A sua atuação fura-greves durante a luta dos ferroviários, proibindo a greve nacional no Congresso, e fazendo-o com o voto favorável dos deputados do DSA, também indica as características deste novo movimento sindical que rompe com anos de paz social e corrupção burocrática. O mesmo pode ser dito da luta, finalmente frustrada, dos trabalhadores da UPS.

As greves intensificaram-se ao longo do verão passado. Os gestores da Starbucks recusaram-se a negociar um primeiro acordo com o sindicato recém-formado e mais de 150 cafetarias entraram em greve em julho. A mobilização espalhou-se entre os motoristas da Amazon, funcionários de hotéis na Califórnia e milhares de profissionais de saúde e professores de diferentes cidades e estados. Durante mais de quatro meses, 17 mil atores e 11.500 guionistas aderiram a uma dura greve em Hollywood.

No dia 4 de outubro, eclodiu a maior greve do setor da saúde da história. Mais de 75.000 trabalhadores da Kaiser Permanent pararam de trabalhar. A disputa é liderada por oito sindicatos e começou nas instalações da empresa na Califórnia, Colorado, Oregon, Washington e Virgínia.12

Um relatório do Instituto de Política Económica de 30 de agosto indicava que o volume total de trabalhadores que entraram em greve em 2022 aumentou 50% em relação a 2021, e o número de trabalhadores sindicalizados aumentou em 200.000. Por seu lado, o Labor Action Tracker da Universidade de Cornell informou que pelo menos 453 mil trabalhadores participaram em 312 greves até agora este ano. Enquanto em 2022 foram perdidos 2,2 milhões de dias de trabalho devido a conflitos e greves, até agora em 2023 o número aumentou para 7,4 milhões.

O crescimento desta onda de greves é facilmente compreendido se considerarmos a disparidade salarial ocorrida nas últimas décadas: “Segundo o Instituto de Política Económica (EPI), um think tank com 37 anos de história, a remuneração dos altos executivos das empresas , os CEOs, cresceu 1.460% desde 1978, enquanto o do trabalhador típico aumentou apenas 18%. Considerando as 350 grandes empresas cotadas, o patrão ganha 399 vezes o que um empregado típico, quando essa proporção era de 20 para 1 em 1965 e de 59 para 1 em 1989.”

E isto vale também para a outrora próspera indústria automóvel, que concentrou a aristocracia laboral do país, e que se transformou numa selva de duplas escalas salariais e empobrecimento: “No caso das Três Grandes, um trabalhador médio da Stellantis teria de trabalhar 365 anos para acumular o salário que Carlos Tavares, o CEO, ganhou em 2022. A chefe da General Motors, Mary Barra, ganha 362 vezes mais do que um funcionário médio. E no caso da Ford, o seu administrador, James Farley, obteve uma remuneração 281 vezes superior à de um trabalhador típico. Os seus salários situavam-se entre 20 e 30 milhões de dólares, por isso os trabalhadores não querem ouvir nem uma palavra de que os aumentos salariais são incomportáveis.”

Pela sua força e peso no movimento operário e na economia nacional, a greve dos trabalhadores do setor automóvel está a concentrar todas as atenções. É um salto que revela a radicalização que está a acontecer nas bases e os seus reflexos até ao topo: “É uma batalha da classe trabalhadora contra os ricos, dos que têm contra os que não têm, da classe multimilionária contra todos os demais ( …) não é que vamos arruinar a economia. Destruiremos a sua economia. A economia que só funciona para a classe multimilionária e não para a classe trabalhadora (…)”. Foi o que afirmou o novo presidente do UAW, Shawn Fain, em discursos para aquecer o ambiente.

97% dos 150 mil trabalhadores do setor votaram a favor da greve, uma unanimidade excepcional. Mas a tática da direção sindical está a ser segmentar o conflito entre as fábricas como forma de dar margem de negociação às direções empresariais e que a melhor oferta sirva de exemplo para as restantes. A verdade é que as simpatias pela greve são tão esmagadoras que tanto Biden, convidado pelo próprio Fain, como Trump tentaram ganhar uma posição nesta batalha e “apoiar” os grevistas. A demagogia dos representantes do capital não tem limites.

A direção sindical adoptou o slogan da campanha “Stand up strike”, uma homenagem à histórica greve de Flint de 1937, que incluiu a ocupação de fábricas e duros confrontos contra a guarda nacional. Todos estão cientes de que o resultado desta luta será de grande importância. Poderá marcar um ponto de viragem no que diz respeito a décadas de colaboração sindical e, se for alcançada uma vitória, deixará uma marca profunda na consciência política de milhões de pessoas. Os seus efeitos na batalha contra a extrema-direita trumpista serão importantes e valiosos.

A Alemanha enfrenta os seus velhos demónios

A fatura por permanecer fiel à estratégia militarista dos EUA na guerra da Ucrânia levou o Governo alemão liderado pelo SPD a uma situação de crise e deslegitimação tão grande que uma força de extrema-direita como a Alternativa para a Alemanha (AfD), dominada hoje por elementos fascistas, conseguiu a segunda posição nas sondagens para as eleições gerais, depois de ter feito progressos espectaculares nas últimas eleições regionais.

O empobrecimento é uma realidade inegável na principal potência da Europa: cerca de 17,3 milhões de pessoas, 20,9% da população, viviam à beira da pobreza ou da exclusão social em 2022, incluindo um quarto de todas as crianças e jovens do país. Além disso, 6,1% destes (5,1 milhões de pessoas) enfrentaram dificuldades consideráveis nesse mesmo ano para pagar a renda, a hipoteca ou determinados serviços (Instituto Federal de Estatística 2022).

O “Governo do Progresso” comprometeu-se com um esforço orçamental para atingir os 200.000 milhões de gastos em defesa exigidos pela NATO, e como é claro, esse dinheiro virá de um forte corte nas despesas sociais.

Esta submissão ao imperialismo estado-unidense não só agravou a crise alemã, convertendo-a numa recessão, como também está a limitar a margem de ação do capital e a fomentar fortes divisões na classe dominante. A indústria alemã está a suportar a maior parte do peso da guerra na Ucrânia. Segundo estatísticas oficiais, no primeiro semestre de 2023, 50.600 empresas faliram, mais 12,4% do que em 2022. A ameaça de uma crescente desindustrialização e de uma forte saída de capitais para outros mercados mais rentáveis, como os EUA, não é exagero.

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Mas apesar do avanço da extrema-direita e do fracasso das políticas da esquerda parlamentar, a classe trabalhadora não está resignada e os conflitos laborais têm aumentado no último ano.

Enquanto Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, ou o vice-chanceler Robert Habeck apelam abertamente a uma maior desvinculação da China, o chanceler Olaf Scholz é muito mais cauteloso. Conhece perfeitamente as implicações desastrosas desta estratégia, que privaria o país de um dos seus principais mercados de exportação. Foi por isso que se reuniu com o primeiro-ministro chinês, Li Qiang, em junho, e elogiou as relações comerciais conjuntas. A política externa do governo de coligação é um mosaico das contradições existentes na classe dominante e das suspeitas venenosas que se desenvolvem contra o parceiro estado-unidense, tanto no topo como na base da sociedade.

A situação da Alemanha é de longe a mais polarizada em décadas. A popularidade do governo liderado pelo social-democrata Olaf Scholz está em queda livre. Cortes sociais, racismo institucional, uma política externa imperialista que desperta uma oposição maioritária entre os setores empobrecidos, uma extrema-direita que alimenta a sua demagogia nacionalista com este fracasso geral e com o colapso político do Die Linke.13

Mas apesar do avanço da extrema-direita e do fracasso das políticas da esquerda parlamentar, a classe trabalhadora não está resignada e os conflitos laborais têm aumentado no último ano.

Começou com greves nos correios e greve no setor público em fevereiro, afetando 2,5 milhões de trabalhadores. Em 27 de março, pela primeira vez em várias décadas, o sindicato de maquinistas EVG convocou uma greve conjunta com o sindicato do setor público Ver.di. Todas estas greves foram traídas pelas burocracias sindicais, resultando em conclusões desfavoráveis, mas deixando claro que o potencial para enfrentar a burocracia aumentou, dando lugar a um ressurgimento do movimento sindical, especialmente entre os setores mais jovens da classe trabalhadora. Este ano, o sindicato Ver.di registou tantas novas filiações como nunca na sua história. Cerca de um terço tem menos de 27 anos.

Às greves no setor público seguiram-se uma onda de greves no setor dos transportes. Em setembro, testemunhamos a luta dos trabalhadores portuários de Hamburgo contra a privatização de 49,9% das ações da maior empresa de logística portuária, HHLA, a favor do gigante empresarial privado MSC, onde pudemos intervir defendendo a necessidade de convocar uma greve para travar a privatização. Um movimento que culminou numa greve selvagem ilegal e não comunicada por 150 trabalhadores portuários no cais de Burchard, mas que foi boicotada pela liderança sindical, resultando numa forte repressão. Em todo caso, todas estas lutas evidenciaram a crescente divisão entre a burocracia sindical e os trabalhadores de base, assim como a vontade destes últimos de avançar antecipando as duras batalhas que surgirão no próximo período.

Das greves económicas à luta política

Com a excepção temporária do Estado espanhol, de Portugal e da Grécia por razões que explicamos em artigos e documentos, todas as economias europeias seguem o mesmo caminho de estagnação e recessão que a alemã. Mas todas elas, incluindo aquelas que crescem timidamente, sofrerão um ressurgimento da luta de classes, com greves dos trabalhadores mais duras e militantes. A paz social foi mantida durante muito tempo graças ao colaboracionismo servil das burocracias sindicais e dos partidos social-democratas, além da prostração das novas formações de esquerda.

A burguesia europeia conhece-as e assimilou-as à sua governação. Por esta razão, não ofereceram a menor concessão, apesar do comportamento muito “razoável” dos burocratas, e responderam com repressão e medidas legislativas totalitárias às mobilizações sociais e dos trabalhadores. As semelhanças com a década de 1930 continuam a aprofundar-se.

Tanto a França como a Grã-Bretanha estão a viver um verdadeiro desastre social, que levou a uma extraordinária escalada da luta de classes. A onda de greves no setor público britânico mostrou a enorme força dos trabalhadores, apesar de anos de desmobilização sindical. Analisamos detalhadamente estas lutas e as condições muito favoráveis que existiam para lançar um apelo à greve geral, colocando a tónica não só nos aumentos salariais e no fim da austeridade, mas também em acabar de uma vez por todas com o pesadelo do governo do Partido Conservador.

Esta combatividade dos trabalhadores britânicos, que resultou em algumas vitórias salariais parciais, chegou menos longe do que poderia. As burocracias de direita que controlam os sindicatos fizeram os possíveis para parcializar e separar as lutas promovidas a partir de baixo, recusando-se a unificá-las e a propor uma greve geral. Quanto à direção trabalhista liderada por Keir Starmer, o seu papel como fura-greves ativo foi celebrado pela classe capitalista.

Encerrou-se um capítulo, mas o substrato de fúria e raiva entre os trabalhadores britânicos não desapareceu. A luta de classes nas ilhas ainda reserva grandes choques para os próximos anos.

Em França, as mobilizações e greves de massas contra o governo reacionário e bonapartista de Macron, na sequência da sua reforma das pensões, deixaram o país à beira de uma crise revolucionária. Ficou comprovada a força da classe trabalhadora e da juventude para pôr em cheque a ordem estabelecida.

Em quatro meses de luta ininterrupta, apenas comparável à revolta de Maio de 1968, acompanhámos detalhadamente o papel dos principais actores envolvidos, especialmente La France insoumise de Jean-Luc Mélenchon e a CGT, bem como a repressão desenfreada contra os manifestantes e a impotência da extrema-direita perante as massas em acção. As análises que publicamos, incluindo as que dedicamos à explosão dos bairros de imigrantes contra a brutalidade policial no final de junho, devem ser lidas como um complemento a este documento, pois fornecem grandes lições para a nossa intervenção na luta de classes internacional.14

Ao contrário de outras correntes que foram incapazes de ver a profundidade do que estava em jogo, a nossa organização insistiu em exigências políticas, programáticas e tácticas que poderiam ter desferido um golpe decisivo a Macron e à V República burguesa. A França voltou a ser um exemplo da rápida transformação que ocorre, em circunstâncias favoráveis, de conflitos aparentemente laborais numa luta política revolucionária de massas, e de como evolui abruptamente o processo de tomada de consciência. Mas, como também salientamos no balanço final, não podemos ignorar os efeitos negativos imediatos quando uma oportunidade histórica deste calibre é desperdiçada por erros da direção.

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Notas

1. Lenin, El imperialismo, fase superior del capitalismo. Fundación Federico Engels, Madrid, pág. 177.

2. Fonte: National Bureau of Statistics, OCDE

3. A empresa chinesa indicou que poderia começar a produzir esta bateria a partir do segundo trimestre do próximo ano em duas fábricas localizadas na província chinesa de Anhui. A Gotion, que tem planos de expansão internacional com uma gigafábrica nos EUA e outra em Marrocos, foi a oitava maior fabricante de baterias do mundo em 2022, de acordo com a SNEResearch.

4. Trotsky, Fundamentos de economía marxista. Fundación Federico Engels, 2019, págs.90-92

5. Lenin, A situação e as tarefas da Internacional Socialista (novembro, 1914). Obras Completas de Lenin, Vol. XXII, Akal, pág.129.

6. Lenin, Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Fundación Federico Engels, 2016, pág.145 e págs.147-148.

7. De acordo com a agência de ratings de crédito Standard and Poor's, nos últimos três anos, mais de 50 promotores imobiliários chineses faliram ou falharam em pagar algumas das suas dívidas. As dificuldades estão também a alastrar-se aos promotores imobiliários públicos, com 18 dos 38 a reportarem perdas no primeiro semestre de 2023.

8. Fonte: Dados do Banco de Pagamentos Internacionais e do Fundo Monetário Internacional

9. Em dólares, a dívida mundial ascendeu a 235 biliões em 2022, 238% do PIB mundial, embora esta seja uma queda face a 2022, ainda é 200.000 milhões de dólares superior ao nível de 2021. Repete-se o mesmo ciclo: imensas injeções de liquidez inundam os mercados mundiais que aumentam o capital fictício a uma escala desconhecida, como evidenciado pelo colapso do mercado de criptomoedas e, sobretudo, pela explosão da inflação, que responde à sede de lucros dos cartéis monopolistas.

10. "Com o encerramento da campanha de resultados do segundo trimestre, os lucros dos acionistas estabeleceram um novo recorde. Os dividendos globais totalizaram 568 mil milhões de dólares de abril a junho de 2023, refletindo um aumento de 4,9% e o maior valor já alcançado num único trimestre. Por região, as empresas europeias são as que mais contribuem para este novo recorde com a distribuição de 184.500 milhões de dólares, seguidas do mercado norte-americano e dos países emergentes que atingem os 202.000 milhões entre si, segundo dados da Janus Henderson, que analisa os dividendos distribuídos pelas 1.200 empresas mais importantes por capitalização bolsista.”  La bolsa reparte un dividendo récord de 0,57 billones de dólares en el segundo trimestre

11. "A devastadora crise dos sem-abrigo também está a assolar o centro de Los Angeles, onde as sujas e desordenadas cidades de tendas estão repletas de residentes zombies que fumam drogas, enquanto outros vendem produtos roubados nas esquinas. Atualmente, estima-se que 42.260 pessoas durmam nas ruas de Los Angeles, um aumento impressionante de 10% em comparação com o ano passado, de acordo com a Autoridade de Serviços para Pessoas Sem-Abrigo de Los Angeles.”  US sees biggest EVER spike in homelessness as country sees a record 11% increase in a year to nearly 600,000 rough sleepers

12. A plataforma reivindicativa está à ofensiva: um aumento salarial superior à inflação, com um pagamento mínimo de 25 dólares por hora, aumentos de 7% ao ano durante dois anos e de 6,25% nos dois anos seguintes, respectivamente, redução da jornada de trabalho, benefícios nas pensões e mais contratações. Outro conflito iminente é o dos 53.000 trabalhadores do setor de hotelaria e turismo de Las Vegas, que afetaria mais de 50 dos grandes hotéis da cidade.

13. O Die Linke foi completamente assimilado ao establishment. Por um lado, o setor liderado por Sahra Wagenknecht, que se opõe à guerra mas com uma linha abertamente nacionalista, faz referências constantes às tradições mais nacional-chauvinistas dos líderes social-democratas mais reacionários do passado, ligando-as às tendências supremacistas quer da classe média quer da classe dominante. Uma retórica impulsionada pela AfD, que divide e debilita a classe trabalhadora e beneficia a extrema-direita. Por outro lado, a maioria dos dirigentes do partido alinhou-se com o imperialismo estado-unidense na guerra da Ucrânia, incluindo o sionismo na sua criminosa intervenção em Gaza. O completo desastre desta orientação está a empurrá-los para a insignificância eleitoral.

14. 

03 de fevereiro, Um milhão de trabalhadores enchem as ruas da França contra Macron. A derrota da contra-reforma das pensões está mais próxima!

07 de fevereiro, França: Novo êxito da greve geral. Redobrar a mobilização até derrotar Macron!

07 de março, França: Rebelião dos trabalhadores contra os ataques às pensões

18 de março, Como em 1968. A classe trabalhadora francesa levanta-se contra Macron

22 de março, O levantamento dos trabalhadores franceses continua em força! Ocupar as fábricas e centros de estudo para derrubar Macron!

25 de março, Tomando o céu de assalto. O levantamento dos trabalhadores e da juventude em França alastra e fortalece-se

10 de abril, A classe trabalhadora e juventude em França mantêm-se firmes contra Macron

14 de abril, Macron responde com a mais selvagem repressão policial

17 de abril, França: Conselho Constitucional desencadeia indignação popular. Abaixo Macron!

30 de maio, França: É necessário convocar uma greve geral por tempo indeterminado.

01 de julho, França: As ruas voltam a arder. Polícia assassina, abaixo Macron!

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