«Na medida em que a questão depende da força militar dos Estados imperialistas, a vitória de um ou outro lado só poderá significar um novo desmembramento e uma ainda mais brutal subjugação do povo ucraniano. O programa da independência da Ucrânia está direta e indissoluvelmente ligado ao programa da revolução proletária. Seria criminoso alimentar quaisquer ilusões a este respeito.»

Leon Trotsky, A Questão da Ucrânia, 22 de abril de 1939

Estas palavras, escritas por Leon Trotsky em 1939, são mais atuais do que nunca. Como explicámos em várias declarações e artigos, a guerra que hoje arrasa a Ucrânia não pode ser entendida cedendo à propaganda do imperialismo da NATO, ao discurso de Putin e da sua camarilha sobre a suposta “desnazificação” ou à falsa luta de libertação nacional com a qual se encobre Zelensky.

Este conflicto sangrento, que já ceifou a vida a dezenas de milhares de civis e soldados, que tem arrasado cidades e infraestruturas vitais, que tem provocado o êxodo de milhões de famílias, gerado uma escalada militarista extraordinária e que pode mergulhar a economia global numa depressão, tem por detrás de si objetivos materiais de grande alcance. 

Analisar o carácter da guerra tendo em conta somente quem disparou primeiro, sem penetrar nas contradições insuperáveis que nos levaram a este ponto e nos interesses de classe que estão em jogo, é um grave erro.

A guerra na Ucrânia vai muito além da invasão das tropas russas iniciada a 24 de fevereiro: é uma contenda imperialista que faz parte da luta global dos EUA e dos seus aliados europeus contra o bloco integrado pela China e pela Rússia. A essência desta matança, tal como a daquelas que a precederam, é a da luta pelo controlo dos mercados, das matérias-primas, das rotas comerciais e dos fluxos de capital. E se for necessário ostentar um esmagador poderio militar para alcançar estes objetivos, é isso que será feito. Ao fim e ao cabo, a guerra é a continuação da política por outros meios.

Omitir que uma nova correlação de forças pôs fim à ordem mundial construída pelos EUA após o colapso da URSS, minimizar a expansão agressiva da NATO nas últimas três décadas ou ainda insistir que a Rússia está isolada depois de quase três meses de guerra — tudo isto faz parte da propaganda ocidental que enche os meios de comunicação para moldar a opinião pública. Por sua vez, quando Putin invoca a defesa da população russa no Donbass mas nega a existência da nação ucraniana de um só golpe e sem contemplações, deixa claro que só pretende salvaguardar os interesses do ressurgente imperialismo russo.

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A guerra na Ucrânia é uma contenda imperialista que faz parte da luta global dos EUA e dos seus aliados europeus contra o bloco integrado pela China e pela Rússia.

Os EUA e a NATO falam hipocritamente em “libertar a Ucrânia” quando a transformaram num Estado títere e enquanto usam o seu povo como carne para canhão. Washington arma, financia e dirige o exército ucraniano e a autodenominada “resistência”, cuja espinha dorsal é composta por uma salganhada de nacionalistas de direita, neonazis e mercenários.

O objetivo do imperialismo estado-unidense é transparente. Encarando tudo isto como a sua última oportunidade para superar os reveses sofridos no Afeganistão, Iraque, Síria… e ainda recuperar de uma decadência económica vertiginosa, não está disposto a ceder um dedo da sua influência no velho continente. Está a pôr a Europa de joelhos e a prolongar uma guerra devastadora na Ucrânia sem enviar um único soldado seu.

Se Putin se atolar num pantanoso, longo e desgastante conflito, Washington está convencido de que a China terá de desistir das suas aspirações à hegemonia. No entanto, nada disto é seguro num momento em que uma crise militar sem precedentes desde 1945 e um desastre económico maior do que a Grande Recessão de 2008 surgem crescentemente como a mais provável perspetiva.

Algumas considerações importantes

Subordinar-se a qualquer um dos blocos em conflito, recorrendo a argumentos como a luta pela “independência nacional” ou à geopolítica barata de “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” não tem nada a ver com o programa marxista e Leninista face ao imperialismo e à questão nacional.

Desde o século XII, os territórios que hoje formam a Ucrânia foram desmembrados e repartidos uma e outra vez entre as classes dominantes da Polónia, Roménia, Rússia, Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia. O resultado foi o de muitas zonas do sudeste do país acabarem com uma população maioritariamente russa, enquanto outras regiões viram a consolidação de importantes minorias de origem polaca, bielorrusa, húngara, romena e até grega, todas junto a uma maioria étnica falante de ucraniano.

Negar a opressão nacional e a brutal pilhagem que o povo ucraniano tem sofrido ao longo da história às mãos de diferentes potências, e especialmente sob o império czarista, é incorrer em falsificação histórica. A luta do povo ucraniano pela libertação nacional jogou um papel de primeira ordem na Revolução Russa de 1917, e é impossível entender a Ucrânia contemporânea sem considerar os esforços de Lenin e dos bolcheviques para aplicar o princípio da autodeterminação das nacionalidades oprimidas sobre bases igualitárias. Mas a degeneração stalinista do Estado soviético implicou uma completa ruptura com a política bolchevique e a sua substituição por uma nova forma de chauvinismo grão-russo.    

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Negar a opressão nacional e a brutal pilhagem que o povo ucraniano tem sofrido ao longo da história às mãos de diferentes potências, e especialmente sob o império czarista, é incorrer em falsificação histórica.

Voltando ao momento atual, Putin é a testa de ferro do novo imperialismo russo emergente e nega os direitos nacionais da Ucrânia, considerando-a uma parte integral do território russo que foi oferecida por Lenin ao nacionalismo ucraniano. Mas será que Zelensky tem uma posição melhor?

O regime reaccionário do atual presidente ucraniano elevou a política do Estado o nacionalismo supremacista que teve a sua máxima expressão no movimento de Stepan Bandera, líder da Organização de Nacionalistas Ucranianos (OUN), nos anos trinta. A colaboração desta fação com as forças militares nazis no combate contra as tropas do Exército Vermelho e no exterminio de mais de cem mil judeus polacos e ucranianos está amplamenta documentada.

Zelensky tem uma posição muito clara sobre os direitos dos seus opositores e das minorias nacionais na Ucrânia. Com o apoio das “democracias europeias” e do imperialismo estado-unidense, aprovou uma legislação que discrimina e oprime legalmente a população etnicamente russa, perseguindo a sua língua e a sua cultura, continuando a estratégia que começou com o triunfo das forças chauvinistas e de extrema-direita na revolta de Euromaidan, em 2014.  

O deslocamento do aparelho de Estado para estas posições materializou-se então na intervenção militar no Donbass, colocando unidades neonazis — como o Batalhão Azov — contra as populações que resistiram à marcha dos acontecimentos. Desde então, as incursões armadas ucranianas na República Popular de Lugansk e do Donetsk, criadas no começo do conflito e atualmente tuteladas pelo Governo russo, custaram a vida de mais de 14.000 pessoas.

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O regime reaccionário de Zelensky elevou a política do Estado o nacionalismo supremacista e tem como modelo Stepan Bandera, genocida e colaborador do nazismo na segunda guerra mundial.

Respondendo aos interesses da burguesia ucraniana pró-ocidental e aos seus amos imperialistas, Zelensky ilegalizou os partidos comunistas e de esquerda, eliminando qualquer tipo de oposição política, perseguiu os sindicatos e dirigentes operários mais destacados, fomentou a criminalização de outras minorias nacionais, estigmatizou meio milhão de pessoas que integram o povo cigano, e também a comunidade LGBTI. Este campeão da “democracia” é na realidade um déspota reacionário. Qualquer apoio direto ou indireto à sua política não tem nada de progressista nem de “humanitário”.

Conhecer o passado para entender o presente

A luta pela libertação nacional do povo ucraniano fundiu-se e entrelaçou-se ao longo da história com a do campesinato e dos trabalhadores. As revoltas camponesas nos finais do século XIX e princípios do século XX, contra os terratenentes polacos e russos, assim como a Revolução de 1905, que colocou a classe trabalhadora ucraniana e russa numa luta contra a autocracia czarista, os latifundiários e os burgueses de Kiev, São Petersburgo e Moscovo, fizeram emergir as aspirações nacionais do povo ucraniano — o direito à sua língua e cultura serem plenamente reconhecidas e respeitadas e da Ucrânia se poder converter numa nação independente e soberana. 

Mas a maioria dos movimentos nacionalistas nascidos naquele período, liderados por elementos burgueses e pequeno-burgueses, tinham uma atitude extremamente hostil às reivindicações dos camponeses (reforma agrária e entrega da terra) e dos trabalhadores (melhoria das suas condições laborais e económicas). Sempre confiaram no patrocínio de uma ou de outra potência imperialista para levar a cabo o seu objetivo de independência e, após o triunfo da Revolução de Outubro, converteram-se em instrumento das burguesias da Alemanha, assim como da França e da Inglaterra, contra o novo poder soviético.

A Ucrânia só pôde exercer o seu direito à autodeterminação, conquistar a sua independência nacional e criar as bases para uma igualdade real entre as línguas e os povos que a integram com a chegada dos bolcheviques ao poder e com a extensão da revolução. Não é um acaso que, dias antes da sua invasão criminosa, Putin tenha feito um discurso no qual acusou Lenin de “inventar a Ucrânia” por ter reconhecido o seu direito à autodeterminação e ter defendido a sua integração na União Soviética enquanto uma República Socialista independente e em pé de igualdade com a República Socialista Russa.

Também não foi por acaso que Zelensky apagou dos livros de história como foi a revolução socialista de 1917 que deu à Ucrânia a oportunidade de independência, facto que implicou um passo gigante não só para a libertação social do povo ucraniano, senão também para a preservação da sua língua e cultura. 

Os sovietes ucranianos, com o apoio entusiasta de Lenin, levaram a cabo uma alfabetização massiva na língua ucraniana e uma promoção da literatura, da arte e das escolas em ucraniano. A República Socialista Ucraniana declarou o ucraniano como língua oficial pela primeira vez na história, fomentando a sua aprendizagem e utilização por todos os funcionários estatais, instituições e meios de comunicação. Em 1919, durante as provações da guerra civil, o Estado operário imprimiu 84 milhões de livros em ucraniano.

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A Ucrânia só pôde exercer o seu direito à autodeterminação e conquistar a sua independência nacional com a chegada dos bolcheviques ao poder e com a extensão da revolução.

É um autêntico crime que hoje os chauvinistas reacionários à cabeça do aparelho do governo e do Estado em ambos os países tentem apagar sistematicamente a história que une os oprimidos da Rússia e da Ucrânia e que teve, além disso, uma continuação heróica na resistência contra a invasão militar nazi e a vitória sobre Hitler durante a Segunda Guerra Mundial.

A esquerda revolucionária tem a obrigação de resgatar o autêntico programa de Lenin e dos bolcheviques para a Ucrânia se quer entender o que se está a passar na atualidade e não ser vítima das pressões ideológicas de classes alheias.

Lenin e o direito à autodeterminação

O ponto de partida do programa Leninista é a defesa do direito à autodeterminação de cada nação e nacionalidade oprimida, o que obviamente implica exercer o direito à independência nacional. Trata-se de uma reivindicação democrática essencial, que jogou um papel fundamental nas revoluções burguesas para lutar contra o particularismo feudal e criar os Estados nacionais. Mas a questão nacional não ficou resolvida com o triunfo do regime burguês. Na época do domínio imperialista a opressão nacional exacerbou-se com a política colonial e de anexações das grandes potências.

A abordagem Leninista da defesa do direito à autodeterminação não implica sempre e em todas as circunstâncias um apoio incondicional à separação, nem a subordinação à política da burguesia da nacionalidade oprimida. Lenin considerava esta defesa como parte de um programa de independência de classe e internacionalista, que defende a unidade dos trabalhadores acima de fronteiras nacionais, e que deve servir para fazer avançar a luta pela transformação socialista da sociedade.

Lenin frisou que a primeira tarefa dos marxistas e dos trabalhadores avançados é lutar contra a sua própria burguesia nacional, educando as massas da nação opressora na defesa do direito a decidir da nação oprimida e combatendo qualquer imposição ou forma de repressão. Os trabalhadores da nacionalidade oprimida, por sua vez, devem manter firme a bandeira do internacionalismo e uma política de classe completamente diferenciada da burguesia nacionalista.

No seu famoso texto, O direito das nações à autodeterminação, uma ampla resposta aos postulados de Rosa Luxemburgo (que negava qualquer papel progressista à luta pela autodeterminação por considerá-la uma concessão aos movimentos nacionalistas burgueses), Lenin aborda a questão de forma concreta e dialética:

«Na medida em que a burguesia da nação oprimida luta contra a opressora, nessa medida nós somos sempre e em todos os casos e mais decididamente que ninguém a favor, pois nós somos os inimigos mais audazes e consequentes da opressão. Na medida em que a burguesia da nação oprimida defende o seu nacionalismo burguês, nós somos contra. Luta contra os privilégios e as violências da nação opressora e nenhuma tolerância para com a aspiração aos privilégios por parte da nação oprimida.

Se não apresentarmos e não defendermos na agitação a palavra de ordem do direito à separação, faremos o jogo não só da burguesia, mas também dos feudais e do absolutismo da nação opressora. (...) Temendo “ajudar” a burguesia nacionalista da Polónia, Rosa Luxemburgo, com a sua negação do direito à separação no programa dos marxistas da Rússia, ajuda de facto os cem-negros grão-russos.1 Ela ajuda de facto o conformismo oportunista com os privilégios (e com coisas piores que os privilégios) dos grão-russos.

Arrebatada pela luta contra o nacionalismo na Polónia, Rosa Luxemburg esqueceu o nacionalismo dos grão-russos, apesar de ser precisamente este o nacionalismo mais perigoso agora, de ser precisamente um nacionalismo menos burguês mas mais feudal, de ele ser precisamente o principal travão para a democracia e a luta proletária. Em todo o nacionalismo burguês de uma nação oprimida há um conteúdo democrático geral contra a opressão, e é exatamente este conteúdo que nós apoiamos incondicionalmente, excluindo rigorosamente a aspiração à sua exclusividade nacional, lutando contra a aspiração do burguês polaco de oprimir o judeu, etc, etc.

Isto é “não prático” do ponto de vista do burguês e do filisteu. Isto é a única política prática e de princípios e que ajuda efetivamente a democracia, a liberdade e a união proletária na questão nacional.

O reconhecimento a todos do direito à separação; a apreciação de cada questão concreta sobre a separação dum ponto de vista que elimine toda a desigualdade de direitos, todo o privilégio, toda a exclusividade.

Tomemos a posição da nação opressora. Pode ser livre um povo que oprime outros povos? Não. Os interesses da liberdade da população grã-russa exigem a luta contra tal opressão. A longa história, a secular história da repressão dos movimentos das nações oprimidas, a sistemática propaganda de tal repressão por parte das classes “superiores” criaram enormes obstáculos à causa da liberdade do próprio povo grão-russo nos seus preconceitos, etc.

Os cem-negros grão-russos mantêm estes preconceitos conscientemente e atiçam-nos. A burguesia grã-russa conforma-se com eles ou adapta-se a eles. O proletariado grão-russo não pode alcançar os seus objectivos, não pode abrir-se caminho para a liberdade, se não combater sistematicamente estes preconceitos.

A formação de um Estado nacional autónomo e independente continua a ser por enquanto na Rússia um privilégio somente da nação grã-russa. Nós, proletários grão-russos, não defendemos privilégio algum, não defendemos também esse privilégio. Lutamos no terreno do Estado existente, unificamos os operários de todas as nações do Estado existente, não podemos garantir esta ou aquela via de desenvolvimento nacional, caminhamos por todas as vias possíveis para o nosso objectívo de classe.

Mas não se pode caminhar para este objectivo sem lutar contra todo o nacionalismo e sem defender a igualdade das diferentes nações. Se à Ucrânia, por exemplo, está destinada a formação de um Estado independente, isso depende de 1.000 factores desconhecidos de antemão. E, não tentando “adivinhar” em vão, defendemos firmemente o que é indubitável: o direito da Ucrânia a tal Estado. Nós respeitamos este direito, não apoiamos os privilégios dos grão-russos sobre os ucranianos, nós educamos as massas no espírito do reconhecimento deste direito, no espírito da negação dos privilégios estatais seja de que nação for.»2

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No seu famoso texto, O direito das nações à autodeterminação, Lenin aborda a questão de uma forma concreta e dialética.

A posição de Lenin partia sempre do que ajudava na estratégia de derrube do capitalismo. Nas nações e nacionalidades oprimidas, como a história tem demonstrado mil e uma vezes, a luta das massas pela sua libertação social tem sempre andado de mão dada com a luta pela libertação nacional. Dizer-lhes que renunciem a ela, adiar a reivindicação dos seus direitos democrático-nacionais até ao triunfo do socialismo, significaria atirá-las para os braços da burguesia nacionalista. Os marxistas intervêm no movimento de libertação nacional apresentando o seu próprio programa e lutando para ganhar a sua direção como parte inseparável do combate pela revolução socialista. 

A Revolução de Fevereiro de 1917 confirmou a perspectiva de Lenin. À exigência do campesinato de distribuição da terra, das reivindicações económicas e políticas do proletariados, da paz por parte dos soldados extenuados nas trincheiras, as massas ucranianas, georgianas, lituanas… juntaram o direito a expressar-se nas suas línguas e a exercer a autodeterminação nacional. Mas o Governo provisório, a coligação de ministro capitalistas e reformistas dos partidos menchevique e social-revolucionário, respondeu a estas aspirações com a repressão e a reafirmação dos interesses imperialistas da Rússia.

No caso da Ucrânia, a importância de a manter subjugada era evidente: representava uma reserva fundamental de carvão, trigo e outros recursos estratégicos. Para além disto, negar a existência de uma identidade nacional ucraniana era um pilar fundamental do nacionalismo grão-russo: a Ucrânia era denominada de “Pequena Rússia” e os planos de russificação e supressão da língua ucraniana tinham sido políticas de Estado. 

O ponto alto mais destacado desse período foi quando as organizações reformistas e nacionalistas pequeno-burguesas que dominavam a Rada ucraniana (Parlamento) adiaram todas as suas reivindicações nacionais para não contrariar as potências imperialistas aliadas (França e Inglaterra) que influenciaram de maneira determinante a posição do Governo Provisório em Moscovo.

A chegada de Lenin a Petrogrado, em abril de 1917, implicou uma mudança de enorme transcendência na orientação do Partido Bolchevique. O apoio “crítico” ao Governo Provisório que Kamenev, Stalin e Molotov tinham mantido desde a Revolução de Fevereiro foi objecto de uma crítica duríssima. Perante a colaboração com a burguesia, Lenin explicou a necessidade de ganhar pacientemente as massas para o programa da revolução socialista e a tomada do poder. As suas ideias foram sistematizadas nas famosas Teses de Abril.

No respeitante à questão nacional, e concretamente à questão da Ucrânia, a sua postura não tinha qualquer ambiguidade:

«Nenhum democrata poderá negar o direito da Ucrânia a separar-se livremente da Rússia. Só o reconhecimento absoluto deste direito nos permite defender (...) a associação voluntária dos dois povos num só Estado (...). Defendemos a mais estreita união dos trabalhadores do mundo contra os seus “próprios” capitalistas e os de todos os demais países, mas para que tal união seja voluntária, o operário russo, que não confia nem por um minuto na burguesia russa nem na ucraniana, defende hoje o direito dos ucranianos à separação, sem impôr a sua amizade, mas esforçando-se por ganhar a sua amizade tratando-os como iguais.»3

Esta atitude seria determinante para a vitória da revolução socialista na Ucrânia. Quando os bolcheviques ganharam a maioria dos sovietes nas principais cidades russas, estes encontravam-se, na Ucrânia, paralisados pela política dos reformistas conciliadores. Os agitadores bolcheviques ucranianos fizeram um trabalho incansável dando a conhecer o seu programa e incentivando à formação de sovietes camponeses que se estenderam sob a palavra-de-ordem de paz, pão e terra.

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Em abril de 1917, ao chegar a Petrogrado, Lenin explicou nas suas famosas Teses de Abril a necessidade de ganhar pacientemente as massas para o programa da revolução socialista e da tomada do poder.

Em pouco tempo ganharam os mujik (camponeses pobres) separando-os dos kulaks (camponeses ricos), e criaram as condições para a unificação das massas oprimidas do campo e das cidades com um programa que incluía a luta pela libertação nacional da Ucrânia. Este aspecto foi determinante para que a ala esquerda do movimento independentista, representada pelos seguidores do jornal Borotba (A Luta), visse no bolchevismo o seu aliado mais confiável e se unisse ao partido de Lenin.

A República Socialista da Ucrânia

Depois da tomada do poder, em outubro, uma política correta a respeito da questão nacional era ainda mais decisiva do que antes. O Estado operário erguido pelos trabalhadores e camponeses russos, ucranianos e de diferentes nacionalidades teve de enfrentar uma brutal guerra civil, combatendo contra a burguesia e os terratenentes que foram apoiados pela intervenção de 22 exércitos imperialistas. A Ucrânia foi um dos principais objetivos da contra-revolução armada.

Os mesmos reformistas e nacionalistas burgueses e pequeno-burgueses da Rada que haviam renunciado à autodeterminação entre fevereiro e outubro, apressaram-se então a declarar uma Ucrânia capitalista independente contra os sovietes. Era a melhor tática para encobrir o seu servilismo perante a burguesia ucraniana e as potências imperialistas: mascarar os seus interesses de classe com a bandeira da independência.

Mas a autodenominada “República Popular da Ucrânia” acabou por ser dirigida por governos extremamente reacionários, sob a proteção dos imperialistas alemães que se dedicaram a liquidar todas as conquistas revolucionárias, devolvendo as terras ocupadas pelos camponeses aos terratenentes, entregando as fábricas aos seus antigos proprietários, recuperando velhas leis czaristas, proibindo o russo e massacrando centenas de milhares de operários e camponeses judeus, russos e ucranianos. Esta república independente, proclamada contra a vontade das massas, converteu-se num protetorado imperialista ao serviço das guardas brancas contra-revolucionárias.

Devastada pela guerra, a Ucrânia soviética esteve submetida a tensões extremas que provocaram polémicas entre os próprios bolcheviques. Não era fácil encontrar orientação sob aquelas circunstâncias, com o nacionalismo ucraniano a ter funcionado como trampolim da contra-revolução. Os debates dentro do Partido Bolchevique, bem como entre os comunistas ucranianos, foram intensos. Eram tempos em que a liberdade de expressão e a possibilidade de manter diferenças internas estavam garantidas pelo regime partidário.

As posições eram fundamentalmente três: um sector defendia uma República Socialista da Ucrânia independente; outro a fusão da Ucrânia com a Rússia numa mesma república; por fim, uma terceira fação tendia para uma federação entre ambas repúblicas. Os três principais sovietes ucranianos (Kiev, Odessa e Donetsk) adotaram posições diferentes. O soviete de Donetsk, por exemplo, chegou a proclamar-se uma república separada da Ucrânia soviética e pediu para ser incorporado na Rússia, argumentando que isso permitiria um melhor funcionamento da economia e frisando a tradição de luta comum com os mineiros russos das regiões fronteiriças.

A postura de Lenin nesse complexo e difícil momento mostrou claramente a força que tinha o seu método flexível, democrático e classista. Vale a pena citar na sua totalidade a carta que enviou aos operários e camponeses da Ucrânia em dezembro de 1919:4

«Camaradas, há quatro meses, no final de agosto de 1919, tive a oportunidade de dirigir uma carta aos operários e camponeses aquando da vitória sobre Kolchak.5

Agora publicarei esta carta integralmente para os operários e camponeses da Ucrânia, por motivo das vitórias sobre Denikin.6

As tropas vermelhas ocuparam Kiev, Poltava e Kharkov e avançam vitoriosamente até Rostov. Na Ucrânia, fermenta a insurreição contra Denikin. É preciso reunir todas as forças para a derrota definitiva do exército de Denikin, que tratou de restabelecer o poder dos terratenentes e capitalistas. Temos de destruir Denikin para estar a salvo da mais ínfima possibilidade de uma nova invasão.

Os operários e camponeses da Ucrânia devem aprender as lições que todos os operários e camponeses russos têm tirado da conquista da Sibéria por Kolchak e da sua libertação pela tropas vermelhas, depois de longos meses de tirania terratenente e capitalista.

A dominação de Denikin na Ucrânia foi uma provação tão dura como a dominação de Kolchak na Sibéria. Não resta dúvida de que as lições desta dura provação farão os operários e camponeses da Ucrânia — tal como aconteceu com os operários e camponeses dos Urales e da Sibéria — compreender com clareza as tarefas do poder soviético, e fá-los-ão defender este poder mais firmemente.

Na Grã-Rússia foi totalmente abolida a propriedade latifundiária. Há que fazer o mesmo na Ucrânia; e o poder soviético dos operários e camponeses ucranianos deve liquidar totalmente a propriedade latifundiária, libertar por completo os operários e camponeses ucranianos da opressão dos terratenentes.

Mas, para além desta tarefa e de outras que foram e são colocadas tanto às massas trabalhadoras da Grã-Rússia como às da Ucrânia, o poder soviético na Ucrânia tem as suas próprias tarefas específicas. Uma destas tarefas específicas merece, hoje, a maior atenção. É o problema nacional ou, por outras palavras, o problema de se a Ucrânia será uma República Socialista Soviética Ucraniana separada e independente, ligada por uma aliança (federação) à República Socialista Federativa Soviética Russa (RSFSR), ou se a Ucrânia se fundirá com a Rússia formando uma República Soviética única. Todos os bolcheviques, todos os operários e camponeses politicamente conscientes, devem analisar atentamente este problema.

A independência da Ucrânia foi reconhecida, tanto pelo Comité Executivo Central da RSFSR como pelo Partido Comunista dos bolcheviques da Rússia. É, portanto, evidente, e por todos reconhecido, que só os próprios operários e camponeses da Ucrânia podem decidir e decidirão no seu Congresso de Sovietes da Ucrânia, se a Ucrânia se fundirá com a Rússia ou se será uma república separada e independente, e neste último caso, que vínculos federativos haverão de estabelecer-se entre essa República e a Rússia. 

Como deve resolver-se este problema no que diz respeito aos interesses dos trabalhadores e ao êxito da sua luta pela total emancipação do trabalho do jugo do capital?

Em primeiro lugar, os interesses do trabalho exigem a confiança mais absoluta e a união mais estreita entre os trabalhadores dos diferentes países e diferentes nações. Os partidários dos terratenentes e capitalistas, da burguesia, esforçam-se por dividir os operários, por avivar as discórdias e antagonismos nacionais, com o fim de debilitar os operários e fortalecer o poder do capital.

O capital é uma força internacional. Para o vencer, faz falta uma união internacional de operários, uma fraternidade internacional de operários.

Nós somos inimigos dos antagonismos e das discórdias nacionais, do isolamento nacional. Somos internacionalistas. Estamos pela união estreita e pela fusão completa dos operários e camponeses de todas as nações do mundo numa República Soviética mundial única.

Em segundo lugar, os trabalhadores não devem esquecer que o capitalismo dividiu as nações num pequeno número de grandes potências opressoras (imperialistas), nações livres e soberanas, e uma imensa maioria de nações oprimidas, dependentes e semidependentes, não soberanas. A criminosa e reacionária guerra de 1914-1918 acentuou esta divisão, exacerbando com ela os ódios e rancores. Durante séculos, foi-se acumulando a indignação e a desconfiança das nações não soberanas e dependentes em relação às nações dominantes e opressoras, tais como as da Ucrânia em relação a nações como a Grã-Rússia.

Queremos uma união voluntária de nações — uma união que exclua toda a coerção de uma nação sobre outra —, uma união que se baseie na mais plena confiança, num claro reconhecimento de unidade fraternal, num consentimento absolutamente voluntário. Uma união assim não se pode realizar de um só golpe; para a alcançar, temos de atuar com suma paciência e com os maiores cuidados, para não frustrar os nossos esforços, para não despertar desconfianças, e para que a desconfiança deixada por séculos de opressão terratenente e capitalista, de propriedade privada e dos antagonismos provocados pela sua distribuição e redistribuição possam desaparecer.

Devemos, por conseguinte, empenhar-nos firmemente em alcançar a unidade das nações e opor-nos implacavelmente a tudo o que tende a dividi-las, e ao fazê-lo, devemos ser muito prudentes e pacientes, e fazer concessões aos resquícios da desconfiança nacional. Devemos ser firmes e inexoráveis perante tudo o que afete os interesses fundamentais do trabalho na sua luta por se livrar do jugo do capital.

O problema da demarcação de fronteiras, pelo momento — posto que nós aspiramos à completa abolição das fronteiras — não é um problema fundamental, importante, mas antes secundário. No respeitante a este assunto, podemos e devemos esperar, porque a desconfiança nacional consegue ser muito tenaz em amplas massas de camponeses e pequenos proprietários, e qualquer precipitação pode acentuá-la, ou seja, pode comprometer a causa da unidade total e definitiva. 

A experiência da revolução operária e camponesa na Rússia, a Revolução de Outubro de 1917, e dos dois anos de luta vitoriosa contra a agressão dos capitalistas internacionais e russos, demonstrou com clareza cristalina que os capitalistas conseguiram, por um tempo, explorar a desconfiança nacional dos camponeses e pequeno-proprietários polacos, letónios, estónios e finlandeses em relação aos grão-russos; que conseguiram, por um tempo, semear discórdia entre eles e nós, apoiando-se nessa desconfiança. A experiência demonstrou que essa desconfiança se desvanece e desaparece muito lentamente, e que quanto mais cuidado e paciência tiverem os grão-russos, que durante tanto tempo foram uma nação opressora, tanto mais seguramente se dissipará a desconfiança.

Foi precisamente por termos reconhecido a independência dos Estados polaco, letónio, lituano, estónio e finlandês, que estamos a ganhar, lenta mas firmemente, a confiança das masses trabalhadoras e oprimidas pelos capitalistas. Este é o caminho mais seguro para as arrancar à influência dos “seus” capitalistas nacionais e conduzi-las com plena confiança em direção à futura República Soviética internacional unida.

Enquanto a Ucrânia não se libertar completamente de Denikin e não for reunido o Congresso de Sovietes de toda a Ucrânia, o seu governo é o Comité Militar Revolucionário da Ucrânia. Para além dos comunistas bolcheviques ucranianos, existem os comunistas borotbistas ucranianos, que trabalham nesse Comité Revolucionário como membros do governo. Os borotbistas distinguem-se dos bolcheviques, entre outras coisas, porque defendem a independência incondicional da Ucrânia. Os bolcheviques não farão deste um objeto de divergência e desunião, não consideram que isto seja um obstáculo para um trabalho proletário harmónico. Deve haver unidade na luta contra o jugo do capital e pela ditadura do proletariado, e não deve haver ruptura entre os comunistas devido ao problema das fronteiras nacionais ou de se as ligações entre os Estados devem ser federativas ou de outro tipo. Entre os bolcheviques, há partidários da completa independência da Ucrânia, partidários de uma união federativa mais ou menos estreita e partidários da fusão completa da Ucrânia com a Rússia.

Não deve haver divergências devido a estes problemas. Serão resolvidos pelo Congresso de Sovietes da Ucrânia. 

Se um comunista grão-russo insiste na fusão entre a Ucrânia e a Rússia, os ucranianos podem muito bem suspeitar que defende essa política não por ter em conta a unidade dos proletários em luta contra o capital, senão por preservar os preconceitos do velho nacionalismo grão-russo imperialista. Essa desconfiança é natural e até certo ponto inevitável e legítima, uma vez que os grão-russos, sob o jugo dos terratenentes e capitalistas, foram durante séculos embebidos no infâme e odioso preconceito do chauvinismo grão-russo.

Se um comunista ucraniano insiste na independência nacional incondicional da Ucrânia, pode-se suspeitar que defenda essa política não devido aos interesses temporários dos trabalhadores e camponeses ucranianos na sua luta contra o jugo do capital mas devido aos preconceitos nacionais mesquinhos e burgueses do pequeno proprietário. A experiência tem fornecido centenas de exemplos de "socialistas" pequeno-burgueses em diferentes países — todos os vários pseudo-socialistas polacos, letões e lituanos, os mencheviques georgianos, os social-revolucionários, etc. — que se disfarçaram de apoiantes do proletariado com o único objectivo de promover fraudulentamente uma política de conciliação com a "sua" burguesia nacional contra os trabalhadores revolucionários. Vimo-lo no caso do Governo de Kerensky na Rússia em fevereiro-outubro de 1917; vimo-lo e continuamos a vê-lo nos demais países.

Assim, portanto, é muito fácil que surja a desconfiança mútua entre os comunistas russos e ucranianos. Como combater esta desconfiança? Como ultrapassá-la e estabelecer uma confiança mútua?

A melhor forma de o conseguir é trabalhando em conjunto para defender a ditadura do proletariado e do poder soviético na luta contra os terratenentes e capitalistas de todos os países e contra as suas tentativas de restabelecer o seu domínio. Esta luta comum demonstrará claramente na prática que qualquer que seja a solução dada ao problema da independência nacional ou das fronteiras, deve haver uma estreita aliança militar e económica entre os trabalhadores da Rússia e da Ucrânia, caso contrário os capitalistas da "Entente", ou seja, da "aliança" dos países capitalistas mais ricos — Inglaterra, França, Norteamérica, Japão e Itália — irão esmagar-nos e estrangular-nos isoladamente. A nossa luta contra Kolchak e Denikin, a quem estes capitalistas forneceram dinheiro e armas, é um claro exemplo deste perigo.

Quem compromete a unidade e a aliança mais estreita entre os trabalhadores e camponeses russos e ucranianos ajuda os Kolchaks, os Denikins, os bandidos capitalistas de todos os países.

Por conseguinte, nós, os comunistas russos, devemos reprimir rigorosamente a mais pequena manifestação do nacionalismo grão-russo que surge entre nós, pois tais manifestações, que são em geral uma traição ao comunismo, causam enormes danos ao separar-nos dos camaradas ucranianos, e acabam a jogar a favor de Denikin e do seu regime.

É por isso que nós, os comunistas russos, devemos fazer concessões quando existem diferenças com os comunistas bolcheviques e borotbistas ucranianos, e quando estas diferenças dizem respeito à independência nacional da Ucrânia, às formas da sua aliança com a Rússia, e, em geral, ao problema nacional. Mas todos nós, os comunistas russos, os comunistas ucranianos e os comunistas de todas as outras nações, devemos ser inflexíveis e intransigentes nas questões básicas e fundamentais, que são as mesmas para todas as nações, nas questões da luta do proletariado, da ditadura do proletariado; não podemos admitir qualquer compromisso com a burguesia ou a mais pequena cisão das forças que nos defendem contra Denikin.

Denikin deve ser derrotado, aniquilado, e deve impedir-se uma repetição de invasões como as suas. Este é o interesse fundamental dos trabalhadores e camponeses tanto da Rússia como da Ucrânia. A luta será longa e difícil, pois os capitalistas de todo o mundo estão a ajudar Denikin e ajudarão os Denikin de todos os géneros. 

Nesta longa e difícil luta, nós, os trabalhadores russos e ucranianos, devemos marchar em conjunto, pois separados não conseguiremos certamente cumprir a nossa tarefa. Sejam quais forem as fronteiras da Ucrânia e da Rússia, sejam quais forem as formas das suas relações estatais mútuas, isto não é tão importante; é um problema sobre o qual se podem e devem fazer concessões, sobre o qual se podem experimentar diferentes soluções; a causa dos trabalhadores e camponeses, da vitória sobre o capitalismo, não sucumbirá por causa disso.

Mas se não soubermos marchar juntos, unidos contra Denikin, unidos contra os capitalistas e os kulaks dos nossos países e de todos os países, a causa dos trabalhadores sucumbirá certamente, durante muitos anos, no sentido de que os capitalistas serão capazes de esmagar e estrangular tanto a Ucrânia soviética como a Rússia soviética.

E o que a burguesia de todos os países, e todo o tipo de partidos pequeno-burgueses — ou seja, partidos "conciliadores" que se aliam à burguesia contra os trabalhadores — mais se esforçaram por conseguir foi a divisão dos trabalhadores das diferentes nacionalidades, suscitar desconfiança, e quebrar a estreita união internacional e a fraternidade internacional dos operários. Se a burguesia for bem sucedida, a causa dos trabalhadores está perdida. Os comunistas da Rússia e da Ucrânia devem, portanto, através de um esforço colectivo, paciente, perseverante e tenaz, frustrar as maquinações nacionalistas da burguesia e ultrapassar preconceitos nacionalistas de todos os tipos, e dar aos trabalhadores de todo o mundo um exemplo de uma aliança verdadeiramente firme entre os trabalhadores e camponeses de diferentes nações na luta pelo poder soviético, pelo derrube do jugo dos terratenentes e capitalistas, e pela República Soviética Federativa mundial.»

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Em dezembro de 1919, Lenin escreveu: "Só os próprios trabalhadores e camponeses ucranianos podem decidir e decidirão no seu Congresso dos Soviéticos ucranianos se a Ucrânia se fundirá com a Rússia ou se será uma república separada e independente".

O stalinismo e o retorno ao nacionalismo grão-russo

A carta de Lenin concentra a teoria do marxismo a respeito da questão nacional num momento de máxima complexidade e tensão, expõe o seu método dialético e incide no carácter principista do qual parte: a máxima unidade da classe trabalhadora de qualquer nação contra os seus inimigos comuns, a burguesia e o imperialismo. 

Foi esta política que levou ao grande triunfo do Exército Vermelho na guerra civil, e à fundação da URSS em 1922. Como Trotsky salientou, "a Constituição da URSS inscreve o direito das nações à separação completa, indicando deste modo que não considera a questão nacional resolvida de uma vez e para sempre".7

O maior respeito e sensibilidade pelos direitos democráticos das nações oprimidas pelo czarismo foi sempre o princípio orientador de Lenin. E foi precisamente a forma como Stalin e os seus apoiantes quiseram resolver o problema nacional durante o debate sobre a Constituição da URSS, o que provocou a oposição furiosa de Lenin e a subsequente ruptura política com ele.

Stalin, que ocupava o cargo de Comissário do Povo para as Nacionalidades, apresentou em setembro de 1922 o seu projecto de Federação Soviética, na qual se concedia uma espécie de autonomia imprecisa às repúblicas “irmãs” da Rússia. No 15 desse mês, o Comité Central do Partido Comunista georgiano opôs-se à formulação de Stalin, postura que este denunciou como “desviacionismo nacional” perante o próprio Lenin, que só foi parcialmente informado da discussão.

Quando a 25 de setembro, após uma pausa prolongada devido à doença, Lenin estava em condições de ler os materiais preparados por Stalin, não hesitou em corrigi-los minuciosamente e em reunir numerosos dirigentes bolcheviques para discutir o assunto. No final desse mesmo mês, Lenin escreveu uma carta ao Bureau Político propondo que as várias repúblicas se tornassem parte da União Soviética em pé de igualdade com a Rússia, e reuniu-se com os líderes comunistas georgianos para lhes assegurar do seu apoio contra as pretensões de Stalin.

A 6 de outubro, o Comité Central aprovou o projecto modificado por Lenin, que daria lugar ao nascimento da URSS a 30 de dezembro de 1922. No calor desta intensa discussão, Lenin escreveu a Kamenev: "Declaro uma guerra não para sempre, mas à morte do chauvinismo russo...".8

Em resposta à "ousadia" dos comunistas georgianos e do apoio que Lenin lhes deu, Stalin decidiu organizar a sua própria vingança política enviando o seu "procônsul" Ordzhonikidze para “pôr no lugar” os dirigentes do partido na Geórgia. Mas o delegado foi longe demais na sua violência e chegou a agredir um dos seus interlocutores. O incidente e a forma brutal, "Grã-Russa", com que o lugar-tenente de Stalin se comportou provocou a demissão em bloco do Comité Central do partido georgiano a 22 de novembro.

Lenin só mais tarde viria a conhecer os detalhes destes acontecimentos, mas quando foi finalmente informado soou todos os alarmes perante este crescimento de um aparelho insensível que concentrava a cada vez mais poder nas suas mãos. No Quarto Congresso da Internacional Comunista, de 20 de novembro a 5 de dezembro de 1922, advertiu no que viria a ser o seu último discurso público: "Tomámos posse da velha maquinaria estatal e esse foi o nosso azar. Temos um grande exército de funcionários do governo. Mas faltam-nos forças para exercer um verdadeiro controlo sobre eles (...) Na cúpula temos não sei quantos, mas em todo o caso não mais de alguns milhares (...) Na base há centenas de milhares de velhos funcionários que recebemos do czar e da sociedade burguesa".

Noutro texto defendeu a mesma ideia: "Escorraçámos os velhos burocratas, mas estão de volta (...) usam uma fita vermelha e arrastam-se pelos cantos. Que fazemos com eles? Temos de combater esta escória uma e outra vez, e se volta rastejando, temos de a limpar uma e outra vez, persegui-la, mantê-la sob a supervisão de verdadeiros trabalhadores e camponeses comunistas“.9

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Lenin dedicou os últimos meses da sua vida a lutar contra o aumento do poder de uma burocracia que concentrava mais poder nas suas mãos a cada dia e que reproduzia os piores traços do chauvinismo grão-russo.

Em finais de dezembro de 1922, Lenin sofreu novos ataques e, ainda que a sua capacidade de trabalho tenha sido muito reduzida, conseguiu reunir forças para ditar aos seus secretários uma série de cartas dirigidas ao XIII Congresso do Partido, que se sucedem ininterruptamente até 7 de fevereiro de 1923.

Esta correspondência passou à história como o Testamento de Lenin.

Na carta que ditou a 26 de dezembro, reflecte novamente sobre o tipo de Estado que existe na URSS, descrevendo-o como "um legado do antigo regime" e seis dias depois volta ao mesmo assunto: «Chamamos de "nosso" a um aparelho que na realidade nos é completamente alheio, uma amálgama burguesa e czarista que era absolutamente impossível de transformar em cinco anos estando privados de ajuda de outros países e quando as nossas preocupações fundamentais eram a guerra e a luta contra a fome.»10

Nas cartas de 29 e 31 de dezembro, Lenin ampliou o seu ataque a Stalin o qual denuncia por encarnar o chauvinismo russo e recusar-se "a admitir a necessidade da ‘nação opressora’ reconhecer o direito da ‘nação oprimida’ à autodeterminação". Finalmente, condena "o georgiano que com desdém acusa os outros de 'social-nacionalismo', quando ele próprio não só é um verdadeiro e genuíno 'nacional-socialista' como também um grosseiro bófia grão-russo".

A 4 de janeiro de 1923, continua a sua denúncia: "O camarada Stalin, ao converter-se em secretário-geral, concentrou nas suas mãos poder ilimitado e não estou convencido de que saiba sempre utilizá-lo com circunspecção suficiente (...). Ele é demasiado bruto, e este defeito, embora bastante tolerável no nosso meio e nas relações entre nós comunistas, torna-se intolerável nas funções de secretário-geral", razão pela qual propõe aos delegados que "considerem como libertar Stalin desse cargo e nomear no seu lugar outra pessoa que, em todos os aspectos, só tem uma vantagem sobre o camarada Stalin, a saber: o de ser mais tolerante, mais leal, mais educado e mais atencioso para com os camaradas, que tenha um humor menos caprichoso".11

No início de março de 1923 tiveram lugar dois eventos de grande significado. Por um lado, Lenin propôs a Trotsky defenderem uma posição comum sobre a questão nacional no iminente XIII Congresso do Partido, e, por outro, escreveu uma breve carta aos camaradas georgianos que é, em si, uma declaração de princípios: "Eu sigo a vossa causa com todo o meu ânimo. Estou chocado com a grosseria de Ordzhonikizde e a conivência de Stalin e Dzerzhinsky. Estou a preparar notas e um discurso em vosso apoio".

Mas Lenin volta a adoecer a 6 de Março de 1923 e quatro dias mais tarde sofre um enfarte quase total que o condena ao silêncio. Depois de dez meses de completa prostração, morre a 24 de Janeiro de 1924.

Toda esta correspondência permaneceria oculta até que Nikita Khrushchev a revelou parcialmente no XX Congresso do PCUS em 1956.

A burocracia stalinista, depois da morte de Lenin, virou as costas aos princípios do bolchevismo sobre a questão nacional. A centralização, a repressão e o ressurgimentos do chauvinismo grão-russo, foram a consequência inevitável do esmagamento da democracia operária e da sua substituição pelo poder despótico de uma casta privilegiada. A teorização do “socialismo num só país” confirmou o abandono do internacionalismo Leninista com consequências nefastas para a revolução mundial.

No seio do partido suprimiu-se qualquer vestígio da anterior democracia interna, e a luta de ideias foi substituída por um regime autoritário. A partir de 1923, a Oposição de Esquerda tentou virar o rumo dos acontecimentos e manteve vivo o programa Leninista. Mas as forças objectivas que alimentavam a reacção burocrática eram muito poderosas e reforçavam-se com o isolamento da URSS depois do fracasso da revolução na Alemanha e no resto da Europa. 

Mas o regime bonapartista de Stalin não era estável. Sob o peso de graves contradições, das suas concessões políticas e económicas à pequena-burguesia do campo e da cidade, criou as condições para o empobrecimento de amplos sectores da população camponesa e trabalhadora, que só podia conter através da repressão mais brutal. A política zigzagueante do aparato dirigente converteu-se em pânico. Em 1928, conscientes do grau de enriquecimento do Kulak e do descontentamento dos operários nas cidades, e temerosos de uma restauração capitalista, deram uma nova volta.

Tomando emprestadas muitas das ideias da Oposição de Esquerda, Stalin e a sua camarilha iniciou um ambicioso plano de industrialização e de coletivização forçada da propriedade camponesa, mas levaram-no a cabo com métodos terroristas. O resultado foi que uma parte importante do campesinato se negou a aceitar a coletivização, e respondeu à violência burocrática rejeitando a requisição, boicotando novas plantações e sacrificando o gado. A fome estendeu-se pela Ucrânia e outras repúblicas, e milhões morreram por causa da ineptitude de Stalin e dos seus lacaios.

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A burocracia stalinista virou as costas aos princípios do bolchevismo sobre a questão nacional e o “socialismo num só país” confirmou o abandono do internacionalismo com consequências nefastas para a revolução mundial.

Neste contexto de refluxo operário e de reacção burocrática, que durou mais de uma década, o descontentamento social na Ucrânia soviética manifestou-se num apoio crescente à ideia de uma República Socialista Ucraniana independente da URSS. No caso da Ucrânia ocidental dominada pela Polónia, a crise capitalista e a opressão nacional tinham provocado uma viragem à esquerda entre as amplas camadas da sociedade atraídas pelas conquistas sociais e nacionais da Ucrânia soviética. Mas as políticas repressivas de Stalin neutralizaram este sentimento, permitindo aos fascistas ucranianos ganhar audiência.

O regime stalinista esmagou a oposição de esquerda, prendeu dezenas de milhares de comunistas e já estava a preparar as grandes purgas de 1936-1939 que eliminaram fisicamente a velha guarda Leninista. Foi nessa altura que Trotsky do exílio levantou a palavra-de-ordem "por uma Ucrânia unida, independente e socialista dos trabalhadores". A luta por esta exigência, liderada pelo proletariado da Ucrânia soviética que ainda conservava as lições de 1917 e a guerra civil fresca na sua memória, poderia fazer avançar a revolução política contra a burocracia stalinista e conquistar as massas da Ucrânia Ocidental, travando os fascistas. Um movimento revolucionário neste sentido encorajaria a revolução política no resto da URSS e a revolução socialista na Europa.

Esta posição de Trotsky foi falsificada pelo stalinismo, como tantas outras, que o acusou de apoiar os nacionalistas reacionários ucranianos. O próprio fundador do Exército Vermelho advertiu indignado em 1939: "Só cadáveres políticos podem continuar a depositar as suas esperanças em qualquer fracção da burguesia ucraniana enquanto líder da luta nacional pela emancipação (...) Não ao menor compromisso com o imperialismo, seja ele fascista ou democrático! Não à mais pequena concessão aos nacionalistas ucranianos, sejam eles clericais-reacionários ou liberal-pacifistas! Não à ‘frente popular’!”12

A restauração capitalista e a “independência” da Ucrânia

A perspectiva de Trotsky de que o mal-estar acumulado em ambas as Ucrânias explodiria, criando as condições para unificar a sua luta, cumpriu-se após a invasão nazi da Polónia e da URSS. Tanto o regime criado pelo nazi ucraniano Stepan Bandera na Galícia polaco-ucraniana, como o dos ocupantes alemães nas zonas da Ucrânia soviética, foram um pesadelo cruel para todos os oprimidos: judeus, ciganos, russos, polacos, ucranianos sofreram um extermínio selvagem às mãos dos fascistas, mas todos eles se mobilizaram em conjunto para os combater.

Entre 4,5 e 7 milhões de ucranianos lutaram no Exército Vermelho. 50% dos 500.000 partidários que lutaram na Ucrânia em 1944 eram de origem ucraniana, enquanto as milícias fascistas de Bandera apenas conseguiram mobilizar entre 15.000 e 100.000 tropas. A vitória do Exército Vermelho significou a reunificação dos territórios e povos que nutriam o corpo vivo da Ucrânia. Mas Stalin nunca lhes permitiu decidir sobre a sua integração na URSS nem sobre nenhum outro aspecto. 

O stalinismo colapsou definitivamente em 1991, levando à implosão da URSS e à restauração do capitalismo em todas as repúblicas que a integravam e no resto dos Estados operários deformados da Europa de Leste. A crise devastadora destes regimes arruinou as condições de vida de centenas de milhões de pessoas, acabou com a economia planeada e levou ao surgimento de uma nova burguesia das entranhas da burocracia. Provocou também uma espiral de revoltas nacionais que foi explorada pelo imperialismo ocidental para tomar posições-chave e alargar a NATO. O caso da Federação Socialista da Jugoslávia e da guerra que a assolou, encorajada pela Alemanha e pelos EUA, é um exemplo perfeito.

O desaparecimento da URSS significou a proclamação imediata da independência da Ucrânia. O movimento pró-independência foi massivamente apoiado, como não podia deixar de ser, especialmente na zona ocidental incorporada na URSS após a Segunda Guerra Mundial, mas também em Donbass e na Crimeia, onde aparecia como uma opção para sair do marasmo que se vivia nesse momento. Como Lenin havia salientado, "a questão nacional é uma questão de pão".

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O stalinismo colapsou em 1991, levando à implosão da URSS e à restauração do capitalismo em todas as repúblicas que a integravam e no resto dos Estados operários deformados da Europa de Leste.

Num contexto de decomposição económica, e após décadas de totalitarismo burocrático que sufocou qualquer iniciativa e organização independente da classe trabalhadora, esta encontrava-se profundamente desmoralizada, atomizada e sem direção. A independência segundo linhas capitalistas, pilotada pelos velhos burocratas stalinistas que se tinham tornado a nova classe proprietária, levou a uma economia fortemente dependente das exportações e do investimento estrangeiro. No leste, os oligarcas ucranianos desenvolveram preferencialmente negócios e interesses comuns com os capitalistas russos. A zona ocidental tornou-se cada vez mais próxima dos imperialistas europeus e estado-unidenses. 

A Ucrânia fornecia 23% da produção agrícola da URSS, 25% do carvão e 35% do aço, importando desta 60% da sua energia e quase metade dos seus bens de consumo.13 À medida que, sob o regime de Putin, se fortalecia um capitalismo russo com os seus próprios interesses e objetivos imperialistas, Washington recorria a uma estratégia cada vez mais agressiva. A Ucrânia converteu-se num peão chave na sua luta contra a Rússia. 

Embora a extrema-direita ucraniana tenha tentado estimular o sentimento anti-russo desde os primeiros momentos da independência, houve uma forte resistência contra este chauvinismo reacionário: o instinto de unidade dos trabalhadores ucranianos, russos e outras minorias, resultante da mistura de diferentes comunidades, o passado comum da luta anti-fascista e a memória das conquistas da economia planificada era todavia muito importante.

Este instinto de unidade expressou-se em diferentes greves e mobilizações contra o encerramento de empresas, exigindo a sua nacionalização14 ou no apoio eleitoral que o Partido Comunista Ucraniano (PCU) recebeu, a força mais votada em todas as eleições até 2002, com mais de 20% de apoio. Nas eleições legislativas de 1998, 2006 e 2007, os fascistas ucranianos de Svoboda (sozinhos ou em coligação com outras forças de extrema-direita) não obtiveram mais de 0,16%, 0,36% e 0,76% dos votos, deixando-os fora da Rada.

Só em 2009 e 2010, aproveitando o desespero e o empobrecimento gerados pela Grande Recessão de 2008 e a ausência de uma política antifascista consistente por parte dos dirigentes da esquerda russa e ucraniana, conseguiu a extrema-direita chauvinista avançar nas eleições locais do ocidente. Nas eleições parlamentares de 2012 ganharam pela primeira vez representação nacional, com 10,04 % dos votos e 37 lugares na Rada. Mesmo assim, secções significativas das massas mobilizaram-se contra o fascismo votando a favor da PCU, que depois de cair para 3% em 2004 devido à sua colaboração com os governos oligárquicos pró-Moscovo, ultrapassou a Svoboda com 13,2% e 2.687.246 votos em 2012.

Com uma política Leninista de independência de classe, lutando tanto contra a oligarquia pró-russa de Yanukovych como contra a oligarquia pró-EUA e fascista, a PCU poderia ter evitado a reviravolta reaccionária dos acontecimentos. Mas os seus dirigentes stalinistas foram um travão objectivo para levantar a necessária alternativa revolucionária.

Revolução e contra-revolução na Ucrânia

Como é sabido, os protestos populares iniciais do Euromaidan em finais de 2013 foram usurpados pela extrema-direita que assumiu o movimento e o dirigiu até conseguir o triunfo completo da contra-revolução. Foi também um grande sucesso do imperialismo estado-unidense e europeu, que financiou toda a miríade de organizações fascistas que protagonizaram estes eventos. A demissão do Presidente Yanukovych em fevereiro de 2014 deu início a um governo controlado pelo ocidente com os fascistas de Svoboda e outros grupos de extrema-direita a ocupar posições-chave no aparelho de Estado e no exército. O novo Executivo impôs um programa raivoso de privatizações e encerramentos de empresas. Mas este não foi o único aspecto.

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Os protestos populares do Euromaidan em finais de 2013 foram usurpados pela ultra-direita que assumiu o movimento e o dirigiu até conseguir o triunfo completo da contra-revolução.

Stepan Bandera foi declarado herói nacional no contexto de uma campanha chauvinista anti-russa de enormes proporções, que incluiu a perseguição de russos e numerosos pogroms contra as comunidades etnicamente russas. Em resposta, uma insurreição em massa irrompeu com o seu epicentro nas regiões industriais de Donbass e cidades como Odessa e Kharkov.

Milhares de pessoas ocuparam edifícios governamentais, esquadras e quartéis-generais da polícia, cidade após cidade, apreendendo armas e proclamando repúblicas populares lideradas por conselhos de representantes eleitos em assembleias de massas na Crimeia, Donetsk, Kharkov, Odessa e Mariupol. O governo de extrema-direita em Kiev reconheceu que tinha perdido o controlo do sudeste ucraniano.

Surgiu uma situação com claros elementos de duplo poder. As forças contra-revolucionárias em Kiev controlavam o ocidente. Os Conselhos das Repúblicas Populares dominavam o leste e o sul. Reflectindo a pressão revolucionária das massas, a República Popular de Kharkov, a segunda cidade do país, proclamou "o fim da exploração do trabalho e a hierarquização das formas colectivas de propriedade". A República Popular de Donetsk proclamou "o controlo popular da distribuição da riqueza criada pela população de Donetsk".

O potencial para estender a revolução por toda a Ucrânia era real. Embora a repressão governamental e fascista tenha sido constante contra a população, como ficou claro pelo assassinato brutal de 48 pessoas na sede do sindicato em Odessa, também se realizaram manifestações em Kiev, e no 1º de Maio o PCU mobilizou vários milhares na capital. O facto mais significativo é que cada ofensiva do exército ucraniano contra os rebeldes terminou com centenas de soldados a confraternizar, a desertar ou a juntar-se às milícias populares. Este factor levaria o regime ucraniano e os seus apoiantes estado-unidenses a encher o exército de fascistas e mercenários.15

Mais uma vez, a falta de uma organização revolucionária de massas foi decisiva.  Alguns agrupamentos locais do PCU promoveram milícias de autodefesa, mas a direção nacional renunciou a mobilizar massivamente os trabalhadores no ocidente ucraniano contra o governo de Kiev.

Putin e a oligarquia russa compreenderam perfeitamente o que estava a acontecer, e em circunstância alguma quiseram uma revolta socialista triunfante na bacia do Donbass e em cidades tão emblemáticas como Kharkov e Odessa. O perigo de que este movimento revolucionário pudesse infectar os trabalhadores russos era óbvio. Foi por isso que interveio com audácia e o mais rapidamente possível para asfixiar a revolução em curso, confiando nos sectores ultra-nacionalistas russos de direita e extrema-direita. Os dirigente mais à esquerda do movimento foram eliminados e o seu discurso comunista e internacionalista apagado.16

Como explicámos na altura num artigo: «O regime capitalista russo não hesitará em manipular o direito de decidir o seu próprio destino da população de Donetsk e Lugansk, se isso proteger (...) os interesses dos grandes oligarcas que saquearam a Rússia, como os ucranianos a Ucrânia (...) O movimento revolucionário dos trabalhadores do sudeste da Ucrânia só poderá triunfar se se espalhar para o ocidente. É necessário defender a unidade de todos os trabalhadores da Ucrânia num programa que combine exigências revolucionárias e democráticas com a expropriação dos oligarcas".

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Iniciou-se uma insurreição de massas contra o governo reacionário de Kiev com epicentro nas regiões industriais de Donbass e cidades como Odessa e Kharkov onde se constituíram repúblicas populares.

Com o processo revolucionário no leste da Ucrânia derrotado, a consolidação de sucessivos governos reacionários e as manobras dos capitalistas ucranianos e dos imperialistas ocidentais conduziram ao cenário actual. A humilhante derrota dos EUA no Afeganistão, que confirmou perante todo o mundo a sua decadência, acelerou os seus planos de estreitar o cerco contra a Rússia e cortar o avanço de Pequim na Europa, incluindo na própria Ucrânia. Biden usou o seu fantoche Zelensky para desafiar Putin, que respondeu com uma intervenção militar contundente. 

Acabar com a guerra e a opressão nacional! Lutar pelo socialismo!

A guerra atual é uma nova e dramática confirmação de que sob a tutela imperialista uma Ucrânia unida, soberana e em paz é impossível. A vitória de qualquer um dos lados em conflito só irá gerar novos ódios nacionais, mais chauvinismo e reação, mais preconceitos venenosos em detrimento do povo ucraniano e russo.

Neste momento as massas ucranianas (independentemente da sua etnia ou comunidade linguística) estão em choque, fugindo das bombas e tentando sobreviver ao inferno criado por Biden, Putin, Zelensky e o resto dos criminosos imperialistas. Aquilo a que alguns chamam de "guerra de libertação nacional do povo ucraniano" não passa de uma farsa dirigida pela CIA e pelo Departamento de Estado para servir os seus interesses. Podemos realmente acreditar que o imperialismo estado-unidense está a armar até aos dentes uma suposta resistência anti-imperialista?

Os EUA, um promotor do nacionalismo supremacista ucraniano durante décadas, está disposto a tudo na sua luta contra a Rússia e a China. O apoio militar permanente a Zelensky aprovado por Biden significa prolongar a guerra pelo tempo que considerarem necessário. Por outro lado, uma vitória de Putin, dominando Donbass, alimentará ainda mais os ódios nacionais, enraizando igualmente o conflito. Se finalmente, forçado pelo desgaste da guerra, for alcançado um acordo diplomático (algo que os EUA têm evitado até agora), a luta global entre os blocos imperialistas irá transformá-lo num prelúdio para novos confrontos.

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As massas ucranianas (independentemente da sua etnia ou comunidade linguística) estão em choque, fugindo das bombas e tentando sobreviver ao inferno criado por Biden, Putin, Zelensky e o resto dos criminosos imperialistas.

A ânsia dos capitalistas e imperialistas por lucros, mercados, matérias-primas e dominação é a força motriz por trás da guerra. A única forma de lutar consequentemente pela paz na Ucrânia, na Rússia e no resto do mundo é que enquanto classe trabalhadora e juventude levantemos a nossa própria política de classe, revolucionária e internacionalista, combatendo todas as formas de opressão, chauvinismo e militarismo. Derrubar o capitalismo e unir a classe trabalhadora mundial com o programa e os métodos da revolução socialista é a alternativa capaz de pôr fim a esta catástrofe.


Notas:

1. Movimento anti-semita ultrarreacionário, promovido pelo Estado czarista, que instigava pogroms contra a população judaica. Inimigo declarado das organizações revolucionárias.

2. Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação, em Obras Escolhidas de Lenin, Edições Avante.

3. Ucrania, Pravda nº 82, 15 de junho de 1917.

4. Lenin, Carta a los obreros y campesinos de Ucrania a propósito de las victorias sobre Denikin, 18 de diciembre de 1919. Obras Completas, Tomo 40,  Editorial Progreso, Moscú 1973, pp. 41-47.

5. General contra-revolucionário que combateu os bolcheviques na Sibéria.

6. Comandante das forças contra-revolucionárias no sul, tomou as cidades ucranianas de Kiev e Kharkov. Durante a sua incursão na Ucrânia, cometeu todo o tipo de atrocidades, execuções em massa, pilhagens e pogroms contra os judeus.

7. Leon Trotsky, La independencia de Ucrania y la confusión de los sectarios, en Sobre la liberación nacional, Ed. Pluma, p.142, Estado Espanhol.

8. Ibíd, p 360.

9. Ibíd., pp. 109-110.

10. Ibíd., p. 371.

11. La última lucha de Lenin. Discursos y escritos, Pathfinder Press, New York, 1997. P.210.

12. Leon Trotsky, La independencia de Ucrania y la confusión de los sectarios, en Sobre la liberación nacional, Ed. Pluma, p.125, Estado Espanhol.

13. J.M.Cheauvier, Signos de fractura en Ucrania (“Para entender Ucrania”, Le Monde Diplomatique 2009, p.27).

14. M. Goanec, La crisis económica vista desde Ucrania, (“Para entender Ucrania”, Le Monde Diplomatique 2009, p.82).

15. «Para compensar a falta de soldados, o governo ucraniano recorreu às milícias paramilitares. São essencialmente compostos por mercenários estrangeiros, muitas vezes militantes de extrema-direita. Em 2020, constituíam cerca de 40% das forças ucranianas e contavam com cerca de 102.000 homens (...) Estavam armados, financiados e treinados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá e França.» La situación militar en Ucrania – The Postil Magazine

16. A Crimeia merece uma menção especial. Cerca de 67,9% da população é etnicamente russa, com fortes laços materiais com a Rússia após décadas de acolhimento da frota soviética do Mar Negro. Temerosa da supremacia ucraniana de extrema-direita, a maioria apoiou a anexação à Rússia em 2014.

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