No último ano e meio os trabalhadores viveram sob ataques incessantes e sistemáticos dos capitalistas e do seu Estado. A onda de despedimentos está a ser massiva. No início deste ano, o INE registava 424.359 desempregados, uma taxa de 7,2% de desemprego, o valor mais elevado desde o início da pandemia.

A camada mais afetada foi a dos trabalhadores não-qualificados — o desemprego cresceu mais entre quem recebia o salário mínimo nacional (SMN) ou pouco acima disso, com uma sobrerrepresentação das mulheres trabalhadoras (26% das quais recebem o SMN). Outro número que demonstra bem a impotência da política seguida pelo governo até aqui é o do aumento da pobreza. Em Portugal, a taxa de pobreza aumentou 25%, com mais de 400.000 pessoas a cair abaixo do limiar de pobreza, ou seja, a viver com menos de 508 euros por mês. A situação é revoltante: uma parte da classe trabalhadora está simplesmente a ser lançada para a indigência, sem dinheiro para fazer face às despesas básicas e enfrentando agora o fim das moratórias do crédito pessoal e, em breve, o fim da proibição dos cortes de energia e água. Há famílias trabalhadoras a passar fome — no ano de 2020, mais de 20.000 famílias recorreram ao Banco Alimentar para sobreviver — e em risco de ficar sem teto a partir de outubro, assim que a proibição dos despejos e as moratórias do crédito à habitação terminarem.

Tal como na crise de 2008, a juventude sofre especialmente. A taxa de desemprego chegou a 24,6% para os trabalhadores abaixo dos 25 anos. Os postos de trabalho criados durante o débil crescimento no primeiro mandato de Costa — essencialmente em call-centers, hotelaria e turismo, entregas, etc., com baixos salários, vínculos precários e longas jornadas de trabalho — desapareceram ainda mais rapidamente do que surgiram. Os postos que se mantiveram, tal como os que agora surgem com os espasmos do setor turístico, fazem-no em condições ainda mais degradantes.

Todo o peso da crise económica e da crise sanitária é lançado sobre os ombros da classe trabalhadora. À crise da habitação, à selvajaria dos despedimentos e do rebaixamento geral dos salários e das condições de trabalho junta-se um reforço da repressão, uma chuva de dinheiro público para a banca, para as empresas do PSI-20 e para todo o grande capital — em especial para a saúde privada — enquanto o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e todos os serviços públicos se degradam, um aumento incalculável nas desigualdades do sistema público de educação, o resgate dos senhorios e das grandes imobiliárias que nunca pararam de fazer despejos ilegais e, por cima de tudo isto, as mais de 17.000 evitáveis mortes que foram causadas diretamente pela covid-19.

Uma sucessão de golpes desta magnitude não se aplica sem a correspondente campanha ideológica. Com Marcelo à sua cabeça, o programa de unidade nacional da burguesia foi firmemente suportado por toda a esquerda parlamentar desde o primeiro dia. Ao invés de concentrar a militância e os recursos na mobilização das massas, na organização dos trabalhadores e da juventude para fazer frente a esta ofensiva da classe dominante, as direções reformistas mantêm a democracia interna estrangulada nos seus partidos e dirigem todas as forças ao parlamentarismo e às instituições burguesas. Temos de perguntar-nos: que tem a ganhar a classe trabalhadora com esta política de submissão e servilismo perante os capitalistas e o seu Estado?

A resposta é curta: nada. A política de conciliação de classes e unidade nacional seguida pelos dirigentes reformistas é feita contra os mais fundamentais interesses da classe trabalhadora e da juventude. Pior ainda, a continuidade desta política cria cada vez mais as condições para a tomada de posse de um governo da direita determinado a concretizar, a qualquer custo, uma ofensiva bárbara contra os explorados e oprimidos.

A crise orgânica do reformismo

O PCP teve o seu XXI Congresso em finais de novembro de 2020. Em maio, foi a vez do Bloco de Esquerda, que celebrou a sua XII Convenção. Estes dois encontros políticos dos principais partidos da esquerda em Portugal tiveram um aspecto fundamental em comum: reafirmaram toda a política de conciliação de classes e cretinismo parlamentar levada a cabo até aqui por ambas as forças.

Ignorando estoicamente cada um dos problemas fundamentais que se colocam à classe trabalhadora, aludindo aos “portugueses” e a “Portugal” ao invés dos trabalhadores, limitando-se à defesa da Constituição e dos “valores de abril” e servindo-se de chavões como “interesses nacionais”, PCP e BE insistem em procurar uma maneira de conciliar interesses de trabalhadores e de patrões. Mais ainda, pretendem maquinar esta conciliação conseguindo um apoio eleitoral mais amplo do que o do PS. O caminho para tal “maioria social” — termo repetidamente utilizado pela direção do BE — é de gradual crescimento eleitoral entre as camadas médias. A realidade mostrou e continua a mostrar precisamente o contrário. Como dissemos noutra ocasião: “Enquanto BE e PCP forem contrafações da social-democracia, os jovens e os trabalhadores vão preferir o produto original”. Hoje, PCP e BE sofrem derrotas e reveses eleitorais sucessivamente, enquanto o PS absorve todo o voto de esquerda e o Chega é já laudado na comunicação social burguesa como “a terceira maior força política”.

O obstáculo intransponível que enfrentam ambas as direções da ala esquerda do reformismo em Portugal é o mesmo contra o qual se estão a esboroar tantas outras direções reformistas à escala internacional: a crise atual do capitalismo fecha as portas a quaisquer concessões da burguesia à classe trabalhadora; ou se salvam os lucros do capital ou se salvam os salários do trabalho. Por outras palavras, a única forma de impedir um retrocesso histórico das condições de vida da esmagadora maioria da população nesta época é rompendo decididamente com o capitalismo e seguindo o caminho da luta revolucionária. Sendo incapazes de sequer imaginar a destruição do sistema que lhes paga as contas e garante as confortáveis vidas de burocratas, os dirigentes reformistas não fazem mais do que acomodar-se à miserabilização da classe trabalhadora como uma inevitabilidade. Exatamente da mesma forma que os seus amos burgueses, as direções reformistas da esquerda depositam toda a sua esperança na recuperação do sistema capitalista, num novo período de crescimento da economia, num futuro no qual serão novamente capazes de negociar alguns remendos e côdeas para os trabalhadores. É para esse futuro que trabalham, e as suas propostas políticas têm como principal objetivo acelerar a recuperação económica dentro dos estritos limites do capitalismo. Este projeto, além de ser uma utopia, é uma utopia reacionária.

O facto é que um novo período de crescimento capitalista, além de não poder ser outra coisa senão o prelúdio de uma nova crise, é uma possibilidade terrivelmente distante e completamente independente das receitas keynesianas destas direções reformistas. A crise do capitalismo mundial é completa — ameaçando até mesmo uma catástrofe ecológica. Os reformistas estão caricatamente desligados da realidade e, precisamente por isso, cada vez mais afastados da juventude em radicalização.

Neste contexto, há uma crescente polarização social e e a correspondente descredibilização da democracia burguesa que se mostra num país após o outro. Em Portugal, o PS, representante da social-democracia clássica, preserva uma certa estabilidade e mostra crescimento eleitoral acima de tudo porque não existe alternativa consequente à sua esquerda, e porque a classe trabalhadora e a juventude rejeitam liminarmente um governo da direita que, como já dissemos, aplicaria um programa draconiano de austeridade. Mas a política de Costa está a descoberto. Desde a gestão da massiva onda de despedimentos sempre do lado dos grandes patrões — com casos emblemáticos como o do grupo TAP, onde os despedimentos ascenderam já a mais de 2.000 —, à tolerância face a despejos ilegais, passando ainda pelo silêncio e inação face às agressões e até homicídios racistas e machistas, a falência do governo de “esquerda” de António Costa é penosamente evidente. A social-democracia encontra-se cada vez mais numa posição de fragilidade, suspensa por um fio sobre o abismo, o fio de ser o mal menor em relação ao PSD e ao Chega.

Com efeito, sem uma alternativa revolucionária dos trabalhadores, e mantendo BE e PCP o seu rumo atual, a força que se prepara para desferir um golpe no PS é precisamente a direita e extrema-direita, as camadas mais reacionárias da sociedade, e não a classe trabalhadora. A tarefa de construir uma esquerda com um programa verdadeiramente socialista, que declare guerra ao capitalismo e baseie a sua força na organização e ação da classe trabalhadora e das massas, coloca-se hoje com mais urgência do que nunca.

As eleições autárquicas

As eleições autárquicas, a par da votação do Orçamento do Estado para 2022 (OE2022), serão um importante momento não só de demonstração como também de aprofundamento das contradições que atravessam a esquerda parlamentar. Além disto, serão um acontecimento de enorme importância para a direita no seu esforço de reorganização — basta recordar que a sorte de Rui Rio e a radicalização da direita “tradicional” se jogam nestas eleições.

Nisto, os provérbios reformistas sobre as diferenças entre a governação nacional e local têm o único propósito de ocultar a continuidade das políticas de conciliação de classe. Ao nível da chamada “política local”, a esquerda parlamentar revela as últimas consequências da política seguida à escala nacional.

No caso do PCP, décadas de governação local deixaram bem clara esta identidade. Onde governa, o PCP chega a ser indistinguível do PS e, em vários aspectos, até mesmo do PSD. As demolições de casas em Loures (como as do Bairro da Torre, em 2020, ou as de Montemor, em 2021), levadas a cabo pelo executivo de Bernardino Soares (PCP), são a mais cruel demonstração do que dizemos. Famílias inteiras, com idosos e crianças, são desalojadas e abandonadas à sua sorte durante uma pandemia e uma crise económica sem precedentes, apenas porque os lucros do capital são estimados acima da própria vida dos trabalhadores e dos pobres. Que “comunismo” é este? Bernardino Soares, presidente da câmara desde 2013, está reduzido a um feitor dos capitalistas. E este é apenas um exemplo ilustrativo das inevitáveis consequências da política de submissão e conciliação do PCP, seguida sem o mínimo desvio em todas as localidades controladas pelo partido.

A direção do BE, que controlou um único município até hoje (Salvaterra de Magos) e o perdeu para o PS em 2013, também deixa clara a sua política a cada novo teste. Em Lisboa, a especulação imobiliária de Ricardo Robles, descoberta em 2018, levou à substituição do vereador por Manuel Grilo. Sem qualquer intenção de enfrentar a deriva neoliberal de Fernando Medina e do PS em Lisboa, Grilo e a direção bloquista limitam-se até hoje a fazer à escala local o que fazem à escala nacional: evitam qualquer choque consequente com a social-democracia e limitam-se a disputar os louros das medidas mais populares do executivo, como a dos manuais escolares gratuitos.

É com este registo que ambos os partidos se apresentam às eleições autárquicas de 2021. Pior ainda, é sem qualquer modificação nesta política que pedem o voto dos trabalhadores em mais uma campanha eleitoral, repetindo todos os erros que garantiram os desastrosos resultados de 2017, que fortalecem o PS e, simultaneamente, encorajam as investidas mais ferozes da extrema-direita contra os oprimidos e os ativistas e militantes de esquerda.

É necessário nada menos do que uma viragem de 180 graus. A esquerda tem de apresentar candidaturas de luta intransigente pelas necessidades e interesses da classe trabalhadora, levantando bandeiras como o fim de toda a precariedade e baixos salários entre trabalhadores municipais, a habitação social pública e gratuita especialmente em cidades como Lisboa e Porto — onde a liberalização completa do mercado imobiliário expulsou milhares de famílias trabalhadoras das suas casas —, os transportes coletivos 100% públicos, gratuitos e ecologicamente sustentáveis, a saúde e educação gratuitas, uma rede pública e gratuita de creches e lavandarias, uma rede igualmente pública de abrigos para vítimas de violência doméstica, machista e homofóbica, ou a do combate real ao racismo e ao machismo com o saneamento de fascistas e elementos de extrema-direita das forças policiais e de toda a função pública.

Qualquer uma destas medidas é impensável sem basear o programa na ação da classe trabalhadora e das massas, denunciando o sistema democrático atual como incapaz de resolver os nossos problemas ou funcionar a favor dos explorados e oprimidos. A organização de assembleias de moradores e de trabalhadores, a mobilização de ações na rua e nos locais de trabalho que envolvam realmente a discussão e a tomada de decisão entre esses moradores e trabalhadores — isto é fundamental numa campanha eleitoral genuinamente socialista.

É preciso lutar por uma esquerda com independência de classe!

Costa prepara-se para receber os fundos europeus, para distribuí-los pelos grandes capitalistas e para aplicar as correspondentes medidas de austeridade. A burguesia, tanto nacional como europeia, exige do seu governo um programa de autêntica pilhagem da classe trabalhadora, e isso será certamente visível no OE2022. A crise está apenas a começar, ao contrário do que afirmam Centeno e numerosos economistas burgueses quando festejam a “recuperação” da economia.

Fica claro o sentido de oportunidade e o instinto de classe da burguesia. Sem dúvida que o último período foi como um balde de água fria sobre a classe trabalhadora e a juventude. O choque dos despedimentos, da pobreza, das erráticas medidas e confinamentos, das mortes e da permanente incerteza e insegurança em todas as áreas da vida teve efeitos que estão só agora a começar a revelar-se, com dados cada vez mais dramáticos sobre a saúde mental dos jovens.

A insistência das direções da esquerda e do movimento operário no programa da unidade nacional também surtiu aqui o seu efeito imediato, com o correspondente esforço de desmobilização e asfixia da luta que levaram a cabo. Mas estas direções acusam os seus limites e debilidades a cada passo em frente dos trabalhadores e da juventude, e o essencial a destacar em tudo isto é precisamente que a crise está a provocar saltos na consciência das massas.

Todo o período de luta que antecedeu a crise económica e sanitária, com a onda de greves e os potentes movimentos de envergadura internacional como as marchas de mulheres do 8 de Março, o movimento de estudantes pelo clima e o enorme movimento da juventude contra o racismo — que encheu as ruas no coração de Lisboa há um ano atrás, já em plena pandemia — não foi de forma alguma apagado. Da mesma forma, as amargas experiências dos últimos meses não estão a passar em branco.

Um choque frontal entre as classes, tal como os que se estão a dar de forma espantosa em numerosos países, aproxima-se também em Portugal. Perante este cenário, a importância da luta por uma esquerda que siga o caminho da ação da classe trabalhadora em completa independência das restantes classes e das instituições do Estado não tem como ser exagerada. Esta é a tarefa que se coloca a todos os trabalhadores, ativistas e militantes da esquerda, com uma urgência que aumenta a cada dia.

Basta de submissão e institucionalismo!

Basta de conciliação de classes!

É preciso construir a esquerda revolucionária!

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