A 4 de setembro o povo chileno votará a nova Constituição que deve substituir a imposta pela ditadura de Pinochet. A poucos dias do referendo, e com uma percentagem muito elevada de indecisos, a rejeição do texto apresentado pela Assembleia Constituinte dominada pela esquerda, e apoiada pelo governo de Gabriel Boric, mantém uma vantagem de dez pontos nas sondagens.

Esta tendência ainda pode ser revertida pela mobilização das massas contra a direita, que já comemora como grande vitória um possível triunfo da rejeição e até mesmo em caso de aprovação marginal. De qualquer forma, a campanha mostra um enorme descontentamento e decepção com o governo. Em dezembro de 2021 Boric recebeu o maior número de votos da história chilena. Em março, quando assumiu o cargo, o seu apoio superava os 50% e a rejeição abaixo dos 30%. Hoje a sua impopularidade ultrapassa os 56% e seu apoio está próximo dos 37%.

A comunicação social da direita aproveita a situação para lançar uma campanha agressiva pelo NÃO, recorrendo a todo tipo de fake news e desinformação sobre a nova Constituição para mobilizar as suas bases. Mas o ponto central é o efeito desmobilizador que está a ter a política do governo de não responder às suas necessidades entre milhões de trabalhadores, jovens e amplos setores das classes médias empobrecidas que votaram na esquerda, cedendo antes às exigências dos capitalistas.

Seis meses de ouvidos surdos às reivindicações do povo...

A impressionante revolta que abalou o Chile em outubro de 2019, abrindo uma profunda crise revolucionária, colocou no centro das suas exigências acabar com a constituição reacionária de Pinochet de 1980 e com o regime capitalista que governou durante 32 anos desde o fim da ditadura em 1989. A luta de milhões nas ruas foi direcionada contra as políticas reacionárias, privatizadoras e anti-sociais que fizeram do país andino o mais desigual da OCDE e um dos mais desiguais do planeta.

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Em outubro de 2019, a luta de milhões nas ruas foi direcionada contra as políticas reacionárias, privatizadoras e anti-sociais que tornaram o país andino um dos mais desiguais do planeta.

Esse mesmo anseio de mudança impulsionou a vitória da aprovação da redação de uma nova Constituição (80% dos votos no plebiscito de 25 de outubro de 2020), a eleição de uma Assembleia Constituinte com clara maioria de esquerda em maio de 2021 e a vitória de Boric em dezembro. Mas a classe trabalhadora esperava medidas imediatas e concretas da Constituinte e mais ainda do governo.

O pacto entre Boric e as direções dos partidos que o apoiavam, a Frente Amplio (FA) e o Partido Comunista (PCCh) com o Partido Socialista (PS), totalmente desacreditado após décadas atuando como um pilar do sistema, trouxe ao novo executivo inúmeros ministros ligados ao mundo dos negócios e aos governos capitalistas anteriores. Nestes meses de gestão, a continuidade com as políticas económicas anteriores foi notória.

Os 1% da população chilena continuam a concentrar 49% da riqueza. Num contexto internacional de preços descontrolados, a inflação atingiu 13,2% em agosto — a maior em 28 anos —, aumentando em 100.000 o número de pobres desde a tomada de posse do novo governo. Mas a sua resposta, contendo os gastos públicos e recusando-se a eliminar os fundos de pensão privados (AFP) e criando um sistema de pensões público, foi um duro golpe. A promessa de introduzir gradualmente um sistema misto significa manter as reformas de miséria.

Perante a campanha da direita denunciando que a nova Constituição imporia saúde e educação 100% públicas, os partidos do governo (incluindo o PCCh) comprometeram-se a manter as clínicas e seguros médicos privados e a educação concertada, que já absorve mais de 50% da oferta educativa. Com os índices de pobreza, desigualdade e precariedade no trabalho a disparar, a tímida ajuda anunciada pelo governo aos mais pobres equivale a combater um cancro com uma aspirina.

...e concessões a oligarcas e imperialistas

O governo também renunciou à declaração de amnistia para as centenas de presos políticos; julgar, punir e sanear os comandantes da polícia e exército responsáveis ​​pelo assassinato e outros danos físicos irreparáveis ​​a milhares de manifestantes, ou abolir a odiada força dos carabineros, uma das forças policiais mais militarizadas e violentas do mundo.

Em vez de amnistia, Boric negoceia um perdão com a direita que, além de limitado, pode significar impunidade para repressores e torturadores. E os carabineros continuam a ser amplamente empregues, reprimindo violentamente as mobilizações da esquerda anticapitalista e dos movimentos sociais, as diversas lutas laborais e estudantis e, com especial crueldade, o povo mapuche.

Na questão mapuche, a política governamental é especialmente escandalosa. Depois de encher a boca a falar do Wallmapu (os territórios ancestrais tomados a ferro e fogo pela oligarquia chilena aos mapuches no final do século XIX), o governo cedeu totalmente à sua criminalização pela classe dominante e às exigências de repressão. Em maio, militarizou a Araucanía e outros territórios, repetindo a mesma medida de Piñera. Em 21 de agosto, prendeu Héctor Llaitul, um dos principais líderes mapuches (difundindo as acusações de terrorismo feitas pela direita). Além disso, Boric demitiu Jeanette Vega (Ministra do Desenvolvimento Social) por se reunir com Llaitul.

A pilhagem e a violência contra os mapuches e outros povos indígenas têm suas raízes no desenvolvimento do capitalismo chileno e são inseparáveis ​​do poder e lucros dos grupos empresariais florestais, de mineração, alimentares e elétricos, setores decisivos da oligarquia fundida com a banca e com as multinacionais imperialistas.

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A pilhagem e a violência contra os mapuches e outros povos indígenas têm suas raízes no desenvolvimento do capitalismo chileno e são inseparáveis ​​do poder e dos lucros dos grupos empresariais.

O mesmo é verdade para as políticas racistas e discriminatórias contra centenas de milhares de migrantes que chegaram da Bolívia, do Peru ou, nos últimos anos, do Haiti e da Venezuela. Longe de garantir a plena igualdade de direitos e salários para trabalhadores chilenos e migrantes, Boric negoceia com outros presidentes latino-americanos como “controlar” e “limitar” os movimentos migratórios.

No que diz respeito a lutar consequentemente contra o machismo e pelo pleno reconhecimento dos direitos LGTBI, o progresso alcançado é produto da mobilização de rua. Mas conquistas como o direito ao aborto (consagrado na nova Constituição), ou diversas medidas contra a violência de género, são dificultadas e limitadas pelo machismo e LGTBIfobia que permeiam um aparelho estatal, judicial e policial infestado de pinochetistas.

Cresce o ceticismo face ao processo constituinte

A insurreição de outubro de 2019 colocou o capitalismo chileno contra a parede. A burguesia só conseguiu impedir a queda do governo assassino de Piñera e a tomada do poder pelas massas por meio de manobras políticas com a “oposição”, especialmente com a assinatura do Acordo de Paz Social e o processo constituinte. A sua assinatura pelos dirigentes do PS e do setor da FA encabeçado por Boric, e a sua aceitação de facto pelo PCCh e pelos dirigentes sindicais, permitiu à classe dominante usar o processo constituinte para desviar o processo revolucionário para o terreno eleitoral e parlamentar.

Após a vitória esmagadora da esquerda nas eleições presidenciais, a burguesia entendeu que precisava de mais tempo e decidiu usar o PS para empurrar Boric e outros líderes da FA e do PCCh para a direita.

Num contexto de crise capitalista, polarização e agitação crescente em todo o mundo, a burguesia chilena está a recorrer a fundo à direita pinerista e Democrata Cristã e aos líderes do PS. Estes dividem os papéis no referendo de 4 de setembro, pedindo a rejeição, aprovação ou abstenção, mas todos concordam que tanto uma vitória da rejeição quanto uma vitória apertada da aprovação exigirão a abertura de um novo processo constitucional e a procura de um “grande pacto social”. O seu objetivo é continuar a desmobilizar e desmoralizar as massas para, assim que possam, lançar uma ofensiva definitiva e esmagá-las.

Neste ponto, Boric e os líderes da FA e do PCCh também estão a atuar como “estadistas” responsáveis, abrindo caminho para os planos da classe dominante. No início de agosto, comprometeram-se por escrito a que, mesmo que a nova Constituição ganhasse, os aspectos mais criticados pela direita seriam negociados e acordados. Isto gerou mais dúvidas e ceticismo entre a sua base social e um maior encorajamento da direita.

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Boric e os líderes da FA e do PCCh também estão a atuar como “estadistas” responsáveis, abrindo caminho para os planos da classe dominante.

O questionamento do processo constituinte está a crescer entre a vanguarda e nalguns setores das massas. Mesmo os pontos mais avançados contidos na nova constituição (reconhecimento do direito ao aborto sem restrições, direito à habitação ou à língua e cultura dos povos originários,...) são apenas para inglês ver, uma vez não são acompanhados de medidas económicas e políticas para garanti-los. Reivindicações centrais como a devolução da terra aos povos originários, a nacionalização do cobre e do lítio, a defesa da natureza pública das pensões, da saúde e da educação... foram eliminadas.

Por uma política revolucionária para transformar o Chile

Defender a palavra de ordem de uma nova Constituinte, ainda que se acrescente o rótulo de livre e soberana, é a postura de algumas organizações que se reclamam da esquerda revolucionária. Mas esta abordagem foi refutada pela experiência. A burguesia não teme as Assembleias Constituintes enquanto continuar a controlar os setores fundamentais da sociedade. Possui mil mecanismos para sabotar a sua atividade e diluir os seus resultados. Nenhuma constituição, por mais progressiva que seja, poderá resolver os problemas das massas chilenas se os capitalistas permanecerem no controlo da economia e do aparelho de Estado.

Não, a posição da esquerda marxista não pode ser repetir o mesmo erro. Livre e soberana, independente ou avançada, uma Constituinte capitalista pode "debater tudo", mas não mudará o que é substancial, o que realmente importa. A esquerda revolucionária chilena deve abandonar esta abordagem etapista, que nos lembra o esquema stalinista de primeiro uma "democracia avançada" e depois logo veremos, e apelar claramente à luta pela transformação socialista do Chile, por um governo dos trabalhadores que materialize as aspirações do povo nacionalizando os bancos, os monopólios e a terra sob o controlo democrático da classe trabalhadora, e destrua o aparelho estatal capitalista.

A classe dominante avançou no seu objetivo de desmobilizar e desencorajar setores das massas. Mas a última palavra ainda não está dita. Apesar da ausência de uma alternativa revolucionária de massas, milhões de oprimidos e especialmente a sua vanguarda estão a mostrar um tremendo instinto e combatividade e tirando conclusões avançadas.

Há apenas uma maneira de evitar a derrota: recuperar a mobilização nas ruas pelas mesmas reivindicações e com os mesmos métodos revolucionários de 2019. Promover comités e assembleias (cabildos, primeras lineas,...) nos bairros, locais de trabalho e estudo; ampliá-los e unificá-los e levantar uma política de frente única da esquerda para lutar por um programa socialista. Este é o desafio para os próximos anos e a única forma de evitar a ameaça da direita e extrema-direita chilenas.

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