Em meio às constantes agressões aos direitos, à dignidade e à vida das mulheres no Brasil de Bolsonaro, nesta última semana, o caso de Mariana Ferrer e a indignação social que despertou a nível nacional e internacional trouxeram à tona a verdadeira face da Justiça burguesa, deixando à mostra o caráter patriarcal e de classe do Estado e de suas instituições.

Desde que veio a público, em Maio de 2019, o caso de violação da jovem Mari Ferrer escancarou a natureza machista da sociedade capitalista: uma mulher de 21 anos, drogada e violentada em uma festa em uma discoteca na zona nobre da cidade de Florianópolis, Santa Catarina. Apesar do sigilo do processo, o caso foi divulgado pela própria vítima em suas redes sociais, denunciando a morosidade da Justiça e a influência do acusado, o burguês André de Camargo Aranha — empresário do setor do marketing —, sobre o andamento do processo.

Após o violador ter sido absolvido, a onda de indignação em relação ao desfecho do caso volta a crescer em resposta à divulgação de detalhes da audiência de julgamento. Um vídeo divulgado pelo Intercept Brasil expõe o tratamento repugnante a que Mari Ferrer foi submetida em tribunal, o tratamento a que as mulheres são submetidas no sistema judicial capitalista.

“Estupro culposo” não existe!

Não basta a violência sexual a que esteve sujeita, a vítima, quando decide romper com o silêncio, sofre mais um tipo de violência que tem como perpetrador o próprio Estado burguês. Desde o tratamento que as mulheres violentadas recebem nas delegacias de polícia, onde são constantemente deslegitimadas, coagidas e humilhadas, passando pelos abusos sofridos em todas as instâncias do poder judiciário, pelos juízes, promotores, advogados e funcionários públicos, até à completa ausência de programas de acolhimento e de proteção pelos órgãos do Estado — toda a arquitetura do sistema penal burguês perpetua a violência de gênero.

O abuso e a humilhação sofridos por Mari Ferrer com os comentários misóginos do advogado do violador, Cláudio Gastão da Rosa Filho, mostram a violência patriarcal profundamente arraigada no sistema judicial e naturalizada socialmente em capitalismo: a culpabilização da vítima, que vem sempre acompanhada da objetificação do corpo feminino, da ridicularização e de insultos sexistas que concebem as mulheres como moralmente responsáveis pela violência que lhes é infligida, como “putas” e “vagabundas”. Assim, separam-se de modo fictício as mulheres que "merecem ser estupradas", as mulheres que merecem ter seus vídeos e fotos íntimas divulgados e as mulheres que merecem ter sua intimidade violada de múltiplas formas distintas, das mulheres decentes e respeitáveis, que cumprem bem o papel que o patriarcado lhes designa. Esse papel não é mais do que o da submissão, do silêncio, do medo, da domesticação perante a violência, a opressão e a exploração.

A decisão judicial proferida pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, coroa o espetáculo de horrores do sistema penal brasileiro: a absolvição de André Aranha é baseada na argumentação da ausência de provas que caracterizem o dolo do agente, ou seja, a sua “intenção” de estuprar a vítima. E uma vez que o estupro na modalidade culposa não está previsto em lei, não há como imputar o crime ao acusado. Foi “estupro culposo”, o violador violou sem querer — é esta a conclusão da “Justiça”!

De resto, a real existência ou não do termo “estupro culposo” na sentença — dúvida que tem sido usada para desviar a atenção do que verdadeiramente importa —é irrelevante. O argumento legal e as ofensas violentas dirigidas a Mariana Ferrer pelo advogado do réu, com a cumplicidade do juiz e do promotor, não deixam dúvidas quanto ao caráter discriminatório da atuação do Estado e de seus agentes, e deixam bem clara a violência machista sistêmica em capitalismo.

A existência mais que suficiente de provas, incluindo exames periciais, com recolha de material genético, vídeos e depoimentos da vítima e de testemunhas, não bastou para condenar o burguês. Enquanto isso, os presídios brasileiros estão lotados de homens e mulheres da classe trabalhadora — em sua maioria negros e negras — que foram presos sem julgamento e sem direito a uma “defesa justa”. Eis aí a verdadeira face racista e machista da Justiça burguesa.

A Justiça burguesa e o governo Bolsonaro atuam de mãos dadas no ataque às mulheres

O capitalismo não apenas oprime as mulheres que são vitimizadas diretamente pelas agressões físicas, psicológicas e morais de seus violadores e agressores. A violência machista opera a níveis mais profundos e é intrínseca à exploração capitalista.

A ofensiva da extrema-direita no Brasil atesta esta realidade. Nos últimos anos, a investida contra os direitos das mulheres tem crescido em conjunto com o agravamento da violência de gênero. O número de estupros registrados no Brasil em 2019 aumentou em 8% em relação ao ano anterior. Das mais de 66 mil ocorrências registradas no ano passado, a maioria — 57,9% dos casos — consiste em estupros de crianças de até 13 anos de idade, enquanto 70,5% dos casos configuram estupro de vulnerável — quando a vítima é menor de 14 anos ou é considerada incapacitada de oferecer qualquer tipo de resistência à agressão.1

O ataque aos direitos reprodutivos e às conquistas da classe trabalhadora como o direito ao aborto tem sido um dos pilares do discurso demagogo da extrema-direita, com a implementação de políticas com consequências pesadas para a vida das mulheres trabalhadoras, que seguem morrendo em abortos clandestinos. São estas, em especial as mulheres negras e pobres, que sentem mais profundamente o impacto da política genocida do governo Bolsonaro e dos parlamentares da bancada da “bala, da bíblia e do boi” — assim chamada por estar ligada a políticas genocidas de repressão, às igrejas evangélicas e ao grande capital, especialmente ao agronegócio.

Tendo as igrejas evangélicas como parte importante da sua base social, o bolsonarismo promove ataques frequentes às liberdades das mulheres brasileiras e da comunidade LGBTQI. A designação de uma mulher — a reacionária evangélica Damares Alves — para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos procura legitimar as agressões aos direitos sexuais e reprodutivos. Damares incita e mobiliza os setores conservadores pró-governo ao ódio contra as mulheres e promove medidas concretas de violação de nossos direitos e de nossa liberdade de escolha e de controle sobre nossos próprios corpos. Inclusive nos casos previstos em lei, como no infame episódio de uma menina de 10 anos vítima de estupro, o governo agitou a sua base social em uma tentaiva de impedir o aborto. Sob o falso pretexto do moralismo cristão, a vida das mulheres e das crianças é colocada em risco, em um país onde uma mulher é estuprada a cada 8 minutos e em que o aborto clandestino é a quarta causa de morte materna.

Esta ofensiva contra as mulheres é inseparável das políticas de austeridade, privatizações, ataques à legislação trabalhista e previdenciária, e cortes dos gastos públicos, que têm levado milhares de mulheres a uma situação ainda mais degradante, empurrando-as para os trabalhos mais precários e para as funções feminilizadas na divisão sexual do trabalho — aquelas que reservam as piores condições de trabalho e as remunerações mais baixas. Outras de nós são ainda empurrandas para o desemprego, para a dependência econômica, para a miséria, para a prostituição, para a fome e mesmo para a morte.

Com a pandemia, a catástrofe capitalista atingiu as mulheres trabalhadoras no Brasil ainda mais fortemente. Diante do absoluto descaso e negacionismo do governo Bolsonaro, o país viu-se rapidamente entre os mais atingidos pela Covid-19, contabilizando oficialmente, até o momento, mais de 160 mil mortes em todo o país. A falta de testes, de EPIs, de respiradores e de leitos de cuidados intensivos (UTI), acompanhada pelas consequências de anos de desinvestimento e de sucateamento do sistema público de saúde — o SUS — condena à morte milhares de mulheres. Além de pôr em risco a vida das mulheres trabalhadoras do setor de saúde, que compõem a linha de frente no combate à pandemia, a política genocida de Bolsonaro é responsável por fazer o Brasil liderar o número de mortes de grávidas e mães puérperas — das 160 mortes maternas associadas ao Covid-19 no mundo, 124 foram registradas no Brasil. Também está entre as principais causas de mortes de mulheres durante a pandemia o aumento da violência de gênero. Com o início da quarentena, em Março, o número de denúncias de casos de violência doméstica aumentou 17,9% em todo o Brasil, quando comparado ao mesmo período do ano anterior. Em Abril, o crescimento saltou para 37,6%. Em comparação com o mesmo período de 2019, nos meses de Março e Abril o feminicídio aumentou 22,2%.2

Assim como Mari Ferrer, muitas outras vítimas de violência sexual e doméstica encontram-se desamparadas e silenciadas pelo Estado burguês e seu sistema judiciário. O que este exemplo evidencia é que mesmo com a mediatização e publicização do caso — algo que raramente acontece com as vítimas de classe trabalhadora, pobres e negras — o Estado capitalista defende os violadores e se recusa a garantir a proteção e a reparação das mulheres vítimas de violência. A defesa dos direitos das mulheres e a sua emancipação não virão pelas mãos do sistema criminal, não serão concedidas pela mesma polícia que agride e assassina jovens negros nos bairros periféricos e reprime as mobilizações e as lutas das mulheres trabalhadoras nas ruas e locais de trabalho, e muito menos pelo mesmo sistema que mantém pobres e negros amontoados nas prisões, confinados em regime de tortura, completamente desumanizados e condenados a uma vida de miséria e estigmatização. A libertação das mulheres trabalhadoras não será conquistada no mesmo sistema que as condena a manter-se como a parcela mais explorada e oprimida da sua classe.

É necessário ir à luta por justiça para Mari Ferrer e pelo fim da violência machista!

É imperativo desmascarar e denunciar a natureza do sistema criminal, cuja função é manter a ordem social capitalista, assim como fazer frente ao modelo punitivista de responsabilização individual que reproduz a lógica machista e racista do Estado. Temos de encher as ruas exigindo justiça para Mari Ferrer — a responsabilização do Estado e de todos os agentes envolvidos, desde o violador ao juiz seu cúmplice, mas não lutamos simplesmente por punir os agressores. Queremos construir uma sociedade livre da violência machista, começando por garantir que as vítimas de violência se sentem seguras e amparadas quando decidem denunciar seus agressores e violadores. É necessário ir à luta com os métodos da nossa classe, aqueles que realmente podem transformar a realidade: a mobilização de massas, as greves, as ocupações!

É urgente levantar um plano de luta por uma sociedade socialista capaz de acabar com a violência machista. O programa da esquerda tem de passar por:

1. Anulação imediata da sentença que absolveu o violador! Expulsão de todos os agentes misóginos, racistas e fascistas do aparelho de Estado e controle democrático do sistema judicial.

2. Um sistema de saúde totalmente público, democraticamente gerido, gratuito e de qualidade, preparado para atender e cuidar todas as vítimas de violência;

3. Aborto livre, seguro e gratuito;

4. Uma rede pública e democraticamente gerida de serviços sociais que vão desde um sistema qualificado a assistir mulheres vítimas de violência até à criação de creches, cantinas e lavanderias coletivas capazes de retirar dos ombros das mulheres os encargos pelo trabalho reprodutivo, doméstico e de cuidados.

Somente com a mobilização e organização da classe trabalhadora nas escolas, nas universidades e nos locais de trabalho é possível lutar por justiça para Mariana Ferrer e por todas as vítimas de violência de gênero, coniventemente mantida pelo Estado e pela Justiça burguesa! Somente com a organização independente da classe trabalhadora é possível construir o caminho revolucionário rumo ao fim do sistema capitalista que sustenta o patriarcado!

Junta-te à Livres e Combativas!

Junta-te ao feminismo revolucionário e anticapitalista!


Notas:

1. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

2. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP.

 
 
 
 
 
 

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