Chegou a hora de expropriar os expropriadores!

O mundo inteiro prepara-se para viver um novo pesadelo de desemprego, empobrecimento e desigualdade. Um desastre que não atingirá unicamente as nações despojadas pela avidez imperialista — mergulhando-as ainda mais profundamente na barbárie; também as populações das nações mais desenvolvidas sofrerão severamente as consequências.

O capitalismo é um vulcão em plena erupção. É importante, por isso, reflectir sobre as causas que nos levaram a esta situação e as alternativas que temos para enfrentá-la. Como é possível que um sistema capaz de elevar tão alto a tecnologia e a produtividade do trabalho fracasse miseravelmente na altura de salvar a vida das pessoas?

Uma irracionalidade aparente domina o mundo, mas por detrás dela esconde-se o pesado tributo pago pela sociedade à ditadura do capital financeiro. Com a sua lógica implacável, a regra do máximo lucro sufoca as relações sociais, económicas e políticas, submete a saúde pública aos seus interesses e determina a vida de milhares de milhões.

Não há saída sob a economia de mercado. E a melhor prova disto é que qualquer indicador que tomemos — quer seja a produção, o investimento, o desemprego, a dívida ou o comércio mundial — sofreu uma contracção espantosa.

Governos capitalistas e especialistas financeiros olham espantados para os dados e levam as mãos à cabeça, prometendo-nos que tomarão as medidas para iniciar a recuperação o quanto antes. Mas acreditar nas suas palavras seria um erro. As suas políticas são uma das causas fundamentais do actual colapso. E enquanto se escondem por detrás de apelos à "unidade nacional" e ao sacrifício comum, estes governos estão a afiar as facas.

Não podemos cair na armadilha da propaganda burguesa, mas reconhecer os factos tal como eles são, começando com a classe dominante que enfrenta esta fase com as mesmas receitas de cortes, austeridade e ataques aos trabalhadores que aplicou após o desastre de 2008. A diferença hoje é que o seu espaço de manobra foi reduzido e os seus apelos a sacrifícios para alcançar um "futuro melhor" são cada vez mais desacreditados, apesar de contarem com a cumplicidade entusiástica das direcções da esquerda reformista.

Lições aprendidas?

"Esta é uma crise sem precedentes” — assinala o relatório de Abril do Fundo Monetário Internacional (FMI) — “Em primeiro lugar, o choque é enorme. A perda de produção relacionada com esta emergência de saúde e com as subsequentes medidas de contenção eclipsa completamente as que desencadearam a crise financeira global [de 2008]. Em segundo lugar, assim como numa guerra ou numa crise política, a incerteza predominante em relação à duração e intensidade do choque é persistente e severa. É muito provável que este ano a economia mundial experimente a pior recessão desde a Grande Depressão, que relegará para segundo plano a recessão registada durante a crise financeira global de há uma década. (...) Na última vez em que a economia mundial enfrentou uma crise desta magnitude, na década de 1930, a falta de um credor multilateral de último recurso forçou os países a procurar liquidez internacional, pela qual adoptaram políticas mercantilistas vãs que não fizeram nada senão piorar a desaceleração global. Uma diferença fundamental na actual crise é que agora contamos com uma rede global de segurança financeira mais forte — em cujo centro está o FMI — que já está a prestar assistência activamente aos países vulneráveis​​.”1 (O destaque é nosso)

O pessimismo que revela o relatório indica a extrema gravidade do momento. Segundo as suas previsões, o PIB global perderá 9 biliões de dólares entre 2020 e 2021. Os “países desenvolvidos” retrocederão 6,1% no seu conjunto. Os EUA poderá cair em mais de 5,6% e a China crescer apenas 1,2%, o que significa uma recessão para os padrões chineses, e a Zona Euro cair 7,5%. Para o sul da Europa, as perspectivas são dramáticas: Grécia -10%, Portugal -8%, Itália e Espanha podem contrair-se até 12%, respectivamente. Além disso, a Alemanha poderá cair 7% e a França 7,2%.

As conclusões são desanimadoras. No entanto, no último parágrafo que citámos deste relatório, a demagogia e a mentira mais ultrajante tentam apagar o rasto das políticas que nos levaram a este beco sem saída. Sim, porque depois de dez anos de resgates empresariais e bancários à custa do saque ilimitado de recursos públicos, as mesmas contradições sistémicas que causaram a Grande Recessão de 2008 foram mais uma vez levadas a um limite insuportável.

O FMI afirma que a principal diferença na crise actual é que contamos com uma rede de segurança financeira global mais sólida do que há dez anos. Tal afirmação está em completa contradição com os factos.

Que aconteceu realmente? O capital financeiro, reforçado pela injecção de liquidez dos bancos centrais, tornou-se ainda mais omnipresente e parasitário, sem que nenhuma barreira tenha sido levantada para impedir isto. O crescimento das acções tornou-se exponencial novamente, em grande parte devido ao fenómeno da recompra massiva de acções das grandes corporações, o que não só catapulta o seu valor em bolsa como também atrai uma massa crescente de capital de proprietários que sabem que com investimentos produtivos obteriam lucros muito mais baixos.

Neste círculo vicioso, a dívida pública e privada converteu-se numa metástase que corrói o organismo económico: em 2019 alcançaram o recorde de 253,6 biliões de dólares, 322% do PIB mundial! Isto é o que se conseguiu acumular no crédito; do lado da dívida, encontramos uma incapacidade orgânica para restabelecer um crescimento sustentado da economia real, a queda permanente do investimento produtivo e o declínio do comércio mundial.

Os lucros das empresas foram novamente aumentados através do negócio especulativo da dívida, das privatizações e da superexploração da força de trabalho; mas a crise de sobreprodução não foi resolvida. Esta é a base objectiva que explica a virulência do colapso e que desmente as análises do FMI.

Contamos realmente com uma rede global de segurança financeira mais sólida? Vejamos. De acordo com os dados fornecidos em 2019 pelo Bank for International Settlements (Basileia, Suíça), em 2018 o valor total dos derivados financeiros2 fora do mercado de acções organizado totalizou 544 biliões de dólares, um montante equivalente a 640% do PIB mundial para este ano. Que progresso foi feito desde a crise do subprime de 2007?

A chamada banca-sombra [shadow banking] — a rede financeira composta por transacções bilaterais, opacas e interdependentes fora do sistema bancário regulamentado — também experimentou um crescimento espectacular. De acordo com o último relatório do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB, na sigla inglesa), em 2017 movimentou 51,57 biliões de dólares, 57,3% mais do que há dez anos. Só na UE, a banca-sombra representa 40% da actividade financeira, de acordo com dados do Conselho Europeu de Risco Sistémico (CERS).

De que segurança financeira nos fala o FMI? É justamente o contrário. Em 2008, ficou claro que a acumulação baseada em crédito, no mercado de dívida e na engenharia financeira excedera os limites naturais do ciclo económico. Na realidade, reflectiam a crise de sobreprodução que se estava a gerar: os enormes fluxos de capital obtidos no período de expansão dos anos 1990 alcançaram rentabilidades cada vez menores no processo produtivo. Portanto, estes capitais ociosos corriam para o mercado bolsista, procurando revalorizar-se e aumentar a sua mais-valia, e encontraram o meio para alcançá-lo através da desregulamentação completa do mercado financeiro.

Dez anos depois, o domínio do capital financeiro tornou-se tão despótico em todas as esferas da atividade económica que rompe qualquer barreira legal sem grandes consequências. Todos os governos do mundo agem como meros administradores deste capital, que mobiliza recursos superiores ao PIB de muitos países avançados.

Marx explicou como o capital acumulado tende a valorizar-se sem sair da esfera financeira, e fá-lo por meio de títulos que são levados a leilão nas bolsas de valores (acções e títulos de dívida) e que representam direitos de cobrança sobre a mais-valia actual, mas também sobre a futura. Este capital financeiro, que vai adquirindo cada vez mais força, torna-se capital fictício: dinheiro que produz dinheiro (D-D') sem a intervenção do processo produtivo e a venda de mercadorias.

Mas, embora este capital fictício, tanto em 2007 como hoje, tenha alcançado um grau muito elevado de autonomia em relação à economia produtiva, em última instância, continua a depender dela. A realização destes direitos de cobrança actuais e futuros, que representam todo o tipo de títulos em bolsa e de dívidas, depende da realização da mais-valia no mercado — e, portanto, da produção — a uma escala que possa satisfazer esta massa de capital fictício que a reclama. Quanto maior for a diferença entre este capital fictício e a produção, maior é também o potencial para uma explosão descontrolada.

Nestes dez anos, o processo de concentração de capital financeiro intensificou-se a uma velocidade imparável. Segundo o Mckinsey Global Institute, 80% de todos os lucros empresariais obtidos no mundo são gerados por 10% dos grupos cotados em bolsa. Três empresas, BlackRock, Vanguard e State Street, já são os maiores accionistas de 40% de todas as empresas estado-unidenses e de 88% das 500 maiores empresas do país.

O caso do fundo de investimento BlackRock é emblemático. Criado em 1988 e sediado na cidade de Nova York, o seu crescimento foi vertiginoso até se tornar o maior banco sombra do mundo, administrando um volume de seis biliões de dólares, o equivalente ao PIB combinado da Alemanha e da França. Os investimentos da BlackRock abrangem actividades chave: automóvel, banca tradicional, aviação, química, petróleo — e é ainda o maior investidor na indústria global de carvão. No Estado espanhol, tornou-se o maior accionista do Ibex 35.3

Esta é a realidade crua, por muito que os líderes da esquerda reformista falem em tecer uma nova solidariedade com os "empresários que protegem os trabalhadores". Esse animal não existe ou, se existe, é insignificante. Se nós, militantes da esquerda e trabalhadores, queremos entender como o capitalismo monopolista, o único capitalismo real, funciona, temos de olhar para o que o marxismo aponta a este respeito:

"O capital financeiro” — escreveu Lenin no seu livro Imperialismo, fase superior do capitalismo — “concentrado em pouquíssimas mãos e desfrutando de um monopólio efectivo, obtém um enorme lucro, que aumenta sem cessar com a constituição de sociedades, a emissão de valores, os empréstimos do Estado etc., consolidando o domínio da oligarquia financeira e impondo a toda a sociedade impostos em proveito dos monopolistas (...) o imperialismo, o domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau mais alto, em que esta separação assume proporções imensas. A predominância do capital financeiro sobre todas as outras formas de capital implica a predominância do rentista e da oligarquia financeira, a situação destacada de alguns Estados, dotados de 'poder' financeiro, entre todos os outros (...) na era do capital financeiro, os monopólios do Estado e os privados entrelaçam-se formando um todo e, tanto uns como os outros, são na realidade apenas elos diferentes da luta imperialista que os maiores monopolistas mantêm em torno da partilha do mundo.”4

Especulação e dívida. O caso do petróleo

O mundo sofre a doença do endividamento a uma escala sem precedentes, e é esta dívida que alimentou uma especulação financeira que parece não conhecer limites. Portanto, nada foi aprendido, nada foi corrigido.

O mercado de títulos “lixo” nos EUA está no auge. As taxas de juros baixas, quase zero, patrocinadas pela Federal Reserve (FED) permitiram às empresas — incluindo as de solvência duvidosa — obter uma montanha de liquidez. O mesmo aconteceu com a “Expansão Quantitativa” desenhada pelo Banco Central Europeu (BCE). Agora muitos desses empréstimos são de cobrança duvidosa. Para não correr riscos, os bancos que tão alegremente emprestaram milhares de milhões de dólares venderam agora essas dívidas aos grandes fundos de investimento para que as reestruturassem e, juntamente com outros títulos de todo o tipo, as transformassem em títulos CLO (collateralized loan obligation). Um retorno ao subprime, mas com dívida empresarial em vez de dívida hipotecária.

Os chamados CLOs representam mais de 650.000 milhões de euros, uma massa que está prestes a explodir e que, segundo a agência Bloomberg, pode provocar uma queda aterradora de Wall Street. Alguém está a fazer alguma coisa em relação a isto? Pelo contrário. Trump e a FED já deixaram claro que operarão da mesma maneira que em 2008, nacionalizando estas perdas e privatizando os lucros futuros.

Na UE, o comportamento é o mesmo. O BCE preparou recentemente um relatório estratégico onde assumia estender as suas injecções de liquidez a este tipo de fundos de investimento e banca-sombra. A instituição presidida por Christine Lagarde avalia o acesso aos seus programas de compra de activos e justifica-o devido à “fragilidade potencial do mercado de financiamento”.

A pressão do capital financeiro em busca de mais-valias especulativas condiciona a actividade da economia mundial. O mercado de petróleo é um bom exemplo. Quando se soube, no dia 20 de Abril, segunda-feira, que o preço de referência do crude nos Estados Unidos foi cotado em negativo, caindo para -37,63 dólares, todos os alarmes dispararam. Parecia uma loucura, sim, mas suportada por uma lógica avassaladora.

Há muito tempo que este sector sofre de uma crise de sobreprodução, está coberto de dívidas gigantescas e sofre críticas ecológicas pelos seus danos ao meio ambiente. É indiferente. Os movimentos especulativos do capital financeiro em direcção ao mercado de futuros de petróleo são uma tendência dominante. As estimativas mais conservadoras falam de que o volume negociado excede entre 15 a 20 vezes a sua produção real. São os grandes fundos criados pela banca de investimento, como a Goldman Sachs, o Morgan Stanley, o JP Morgan ou a BP Capital, que assumiram o controlo desta indústria.

Estas empresas, ávidas por mais-valias rápidas, impulsionaram a técnica ultra-poluente da fractura hidráulica, o conhecido fracking. Em 2018, a produção deste tipo de crude aumentou para 2,2 milhões de barris por dia e, um ano depois, atingiu sete milhões por dia, com os quais os Estados Unidos passaram de importador líquido a exportador líquido de petróleo. As razões geoestratégicas, derivadas da luta imperialista pelo controlo de matérias-primas, também se relacionam com isto. Mas, neste caso, como nas suas intervenções armadas no Afeganistão ou no Iraque, a burguesia estado-unidense colheu um monumental fiasco.

Os grandes monopólios do petróleo pediram emprestado milhares de milhões de dólares da grande banca estado-unidense para realizar os seus planos de perfuração e abertura de poços, construir infra-estruturas para transporte e manutenção da maquinaria extractiva. O negócio parecia dinâmico, mas desde o início os resultados foram negativos. Os custos de produção do fracking foram rapidamente confirmados como muito superiores aos de outros crudes. Mas interromper a produção significaria alterar o roteiro dos investimentos especulativos. O que fazer então para que a rentabilidade dos fundos de investimento não caísse? Fácil, o governo encarregou-se da factura subsidiando os preços e a produção.

De acordo com dados da Oil Change International, entre 2015 e 2016, com Obama ainda no poder, o governo dos EUA subsidiou as indústrias de petróleo, gás e carvão com 14.700 milhões de dólares por ano, que também receberam outros 5.800 milhões dos estados federados. A isto, há que acrescentar 14.500 milhões de dólares anualmente em subsídios ao consumo. Globalmente, as ajudas e subsídios para todo o sector podem oscilar entre os 500.000 milhões e os 5,2 biliões de dólares por ano, dependendo dos vários relatórios que circulam.5

Com a administração Trump, o apoio à indústria do petróleo tornou-se uma orientação estratégica: “Make America Great Again”! Personagens como Rex Tillerson, ex-presidente da Exxon Mobil indicado como primeiro Secretário de Estado (Ministro dos Negócios Estrangeiros), ocuparam posições sensíveis no mais alto escalão do governo. Embora as ajudas tenham se multiplicado nestes quatro anos, o declínio e a crise no sector não pararam de se espalhar.

O declínio do imperialismo dos EUA, exemplificado pela sua incapacidade de exercer a liderança mundial diante da pandemia da Covid-19, encontra outro símbolo na ruína que atravessa a sua poderosa indústria petrolífera. Na realidade, se chegarmos ao fundo da questão, isto é também a confissão de que o capitalismo colide novamente com o problema da sobreprodução e, por muitos esquemas a que recorra no mundo do capital fictício, no final, a vida real impõe-se.

De acordo com a Moody’s, 91% das falhas nos negócios nos EUA no último trimestre de 2019 ocorreram no sector do petróleo e gás, que perderam em média 45% do seu valor de mercado desde o início do ano. Os títulos de dívida de alto risco do sector representam 30%.

A consultora Rystad Energy estima que, se o barril recuperar 20 dólares, 533 empresas petrolíferas estado-unidenses poderão declarar insolvência em 2021. Se os preços não excederem os 10 dólares, as falências poderão ser superiores a 1.100, praticamente todas as empresas. E isto coloca os maiores bancos de investimento em cheque: JP Morgan Chase, Bank of America, Citigroup e Wells Fargo financiaram cada um destes negócios com mais de 10.000 milhões de dólares.

O FMI diz que temos uma rede mundial de segurança financeira mais sólida do que há dez anos. Mas entre 2020 e 2022, somente as empresas petrolíferas dos EUA terão de enfrentar vencimentos das suas dívidas no valor de 137.000 milhões de dólares. "Temos observado estas empresas cambalear sob dívidas crescentes e fluxos de caixa negativos há muitos anos", afirmou Kathy Hipple, analista financeira da Energy Economics and Financial Analysis (Ieefa). "É cada vez mais difícil para estas empresas encontrar investidores para mantê-las à tona e evitar a implosão".

É por isso que o governo Trump pretende resgatar a indústria do crude usando 750.000 milhões do pacote de 2 biliões que o seu governo aprovou. Muito está em jogo para o imperialismo estado-unidense.

Mas as perspectivas não podem ser mais incertas. O transporte rodoviário caiu mais de 70% nos meses de confinamento na Europa e nos EUA, assim como o tráfego aéreo. Só em Abril, a procura de gasolina e diesel para automóveis diminuiu 33% e a de combustível de aviação em 64% em comparação com o mesmo mês de 2019 nos EUA. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), a procura mundial de petróleo cairá no segundo trimestre de 2020 para cerca de 23,2 milhões de barris diários em comparação com o mesmo período de 2019 — uma redução de 25%. É óbvio que o pacto alcançado entre a OPEP e a Rússia a 12 de Abril para reduzir a produção durante o mês de Maio em 12 milhões de barris por dia será insuficiente. Os preços do petróleo continuam a vacilar e não há espaço suficiente para armazenar tanto excedente.

Resumindo. O financiamento descontrolado de dívidas corporativas por meio de crédito barato, dogma de todos os bancos centrais do mundo, além de repetir a história de especulação que levou à explosão de 2008, explica as perspectivas sombrias que pairam agora sobre a economia mundial.

De acordo com a OCDE, o valor total dos títulos de dívida emitidos por empresas (excepto bancos) chegou a 13,5 biliões de dólares no final de 2019, um valor equivalente ao PIB da China. Um recorde, e precisamente o dobro do valor de 2008. Mas este tumor maligno incubou muito antes da pandemia bater à porta do Ocidente.

A burguesia esquece rapidamente as lições da história. Os marxistas não. Por isso, vale a pena lembrar Rosa Luxemburgo:

"Quando a tendência, inerente da produção capitalista, de expansão ilimitada choca com os limites da propriedade privada ou com as dimensões restritas do capital privado, o crédito surge como meio de superar, de um modo capitalista, estes obstáculos. (…) Portanto, longe de ser um instrumento de eliminação ou mitigação de crises, é um factor especialmente poderoso para a formação das mesmas. E não poderia ser de outra maneira, se entendemos que a função do crédito, em termos gerais, é eliminar a rigidez das relações capitalistas e impor por toda a parte a maior elasticidade possível, a fim de tornar todas as forças capitalistas o mais flexíveis, relativas e mutuamente sensíveis possível. Com isto, o crédito facilita e agrava as crises, que nada mais são do que o choque periódico das forças contraditórias da economia capitalista."6

Os beneficiários da crise

Os governos capitalistas e os seus porta-vozes mediáticos comparam constantemente a crise actual com um conflito bélico. Não é acidental. Faz parte da retórica política da "unidade nacional", com os seus apelos que "todos temos que fazer a nossa parte" ou que "unidos venceremos esta batalha". Tampouco é acidental que os antigos social-democratas, assim como os novos, se juntem entusiasticamente a esta "União Sagrada". Afinal, consideram-se os doutores democráticos do capitalismo. Nós, revolucionários, estamos na barricada oposta, ao lado de Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky, e continuamos a sua luta intransigente contra a colaboração de classes.

Se ontem, como hoje, é a classe trabalhadora que morre, adoece e sofre o flagelo do desemprego e da miséria, o que é que nos une à oligarquia de multimilionários que, com as suas decisões, nos conduziram a este desastre? Se se perde de vista a defesa de uma política de independência de classe, só se pode aspirar a desempenhar um papel de cúmplice.

O que dizemos é óbvio perante as medidas tomadas pelas grandes potências. Ao mesmo tempo que Trump e o punhado de multimilionários que controlam a indústria e a política estado-unidense deixam morrer dezenas de milhares dos seus concidadãos — a maioria trabalhadores pobres e afro-americanos —, não perdem tempo em aprovar um plano 2,2 biliões de dólares para "resgatar a economia". Para financiá-lo, o Departamento do Tesouro anunciou a 4 de Maio uma emissão 2,99 biliões de dólares da dívida, o dobro do montante emitido em todo o ano de 2019 (1,2 biliões de dólares).

Para onde vai esta massa de capital? Para salvar as empresas do Dow Jones e Nasdaq. Até dois senadores democratas (Whitehouse e Doggett), insuspeitos de bolchevismo, denunciaram num relatório que 83% deste número beneficiará as grandes empresas e pessoas com renda superior a um milhão de dólares por ano, e apenas 3% dos estado-unidenses que ganham menos de 100.000 dólares por ano.7

Na Europa, para além da filigrana publicitária, a maior parte dos recursos mobilizados têm o mesmo destino, seja o Governo PSOE-Unidas Podemos no Estado espanhol, o Executivo de Conte em Itália, Macron em França ou o governo de coligação da CDU-SPD presidido por Merkel na Alemanha. No total, mais de 6 biliões de euros das nações mais poderosas para salvar o capital financeiro e as grandes corporações.

Estas medidas "intervencionistas" dos Estados nada têm a ver com nacionalizações de grandes empresas ou sectores produtivos no sentido socialista. O que estamos a ver é uma operação, de importância ainda maior do que em 2008, para o benefício exclusivo dos grandes capitais. Não nos podemos enganar. É mentira, e mil vezes mentira, que a classe dominante tenha qualquer intenção de mudar de estratégia e de usar o "Estado" para resolver as necessidades sociais, enfrentar o desemprego em massa ou manter o poder de compra e as condições de vida da população. Estamos diante de um Estado capitalista agindo em defesa da sua classe, algo que não é novo na história. Um Estado que, ainda que isto custe a todo o tipo de reformistas e keynesianos, não tem a capacidade de reverter o actual ciclo depressivo.

"Através dos vários estágios do capitalismo" — escreve Trotsky — "através dos ciclos conjunturais, através de todos os regimes políticos, através dos períodos de paz ou dos períodos de guerra, o processo de concentração de todas as grandes fortunas em cada vez menos mãos continuou e continuará sem fim. Durante os anos da Grande Guerra, quando as nações sangravam até à morte, quando as próprias organizações políticas da burguesia jaziam esmagadas sob peso das dívidas nacionais, quando os sistemas fiscais rolavam rumo ao abismo — arrastando com eles as classes médias — os monopolistas acumulavam lucros sem precedentes com o sangue e a lama."8

As palavras de Trotsky parecem ter sido escritas hoje. Independentemente da escala da tragédia, as grandes fortunas continuam a engordar, completamente indiferentes à morte, à fome e ao sofrimento de que padece a humanidade.

Segundo a revista Forbes, existem 607 plutocratas nos EUA com uma fortuna pessoal de mais de mil milhões de dólares (925 milhões de euros), e a actual crise está a fortalecê-los. Os números são fornecidos pelo último relatório do Instituto de Estudos Políticos, sediado em Washington DC: apenas nas três semanas entre 18 de Março e 10 de Abril, estes multimilionários aumentaram a sua riqueza em 282.000 milhões de dólares (261.000 milhões de euros); neste mesmo período, 22 milhões de estado-unidenses registaram-se como desempregados.

Entre esta elite, Jeff Bezos, fundador da Amazon, aumentou a sua fortuna em 25.000 milhões de dólares graças ao seu negócio de entregas durante o grande confinamento, apesar das repetidas denúncias dos seus trabalhadores pela gritante ausência de medidas de segurança sanitária. Mas quanto vale a vida da classe trabalhadora diante da expectativa de tamanhos lucros?

A lista completa-se com outros nomes conhecidos: Elon Musk, cofundador do PayPal e da Tesla, entre outras empresas, aumentou a sua riqueza em 5.000 milhões de dólares (4.627 milhões de euros). Eric Yuan, da Zoom, 2.580 milhões (2.388 milhões de euros); Steve Ballmer, da Microsoft, 2.200 milhões (2.036 milhões de euros)... Os dados do relatório são devastadores, concluindo com o seguinte: entre 2010 e 2020, a riqueza da classe multimilionária nos Estados Unidos aumentou 80,6%, passando de 1,6 biliões para 2,9 biliões de dólares.

É este o cenário no país em que os prisioneiros cavam valas comuns para enterrar os mortos não reclamados, ou centenas de cadáveres ficam amontoados em camiões frigoríficos devido à falta de espaço nas morgues de Nova York. É o que acontece no país que carece de saúde pública, e onde mais de 40 milhões de pessoas não têm seguro de saúde, onde a pobreza severa atinge 25 milhões, o país que detém o recorde de população carcerária mundial, com mais de 2 milhões de reclusos (também pobres e afro-americanos na sua maioria).

O sonho americano, tal como o imperador nu, mostra-se agora como realmente é. O mesmo pode ser dito da União Europeia, oferecendo-nos todos os dias o espectáculo circense da sua desunião e a luta intestina de cada burguesia nacional para proteger a sua indústria, os seus bancos e o seu mercado às custas do vizinho. Salve-se quem puder, e sempre à custa da classe trabalhadora!

O governo é o comité executivo da classe dominante, dizia Marx. Qualquer governo que respeite a lógica do capitalismo é isto mesmo. Muito em breve, muito mais cedo do que imaginam os dirigentes reformistas da esquerda, uma nova onda de cortes selvagens, privatizações, ataques aos direitos laborais, cortes salariais e austeridade estará sobre a mesa em nome da "responsabilidade de Estado". Tudo isto acompanhado, claro está, de mais repressão policial e de novas leis para restringir os direitos democráticos.

A luta imperialista vai agudizar-se

Referindo-se ao crash de 1929, Trotsky escreveu: “Num organismo com o sangue envenenado, qualquer pequena doença tende a tornar-se crónica; no organismo podre do capitalismo monopolista, as crises assumem uma forma particularmente maligna.”9 Esta putrefacção está a espalhar-se desde há muito tempo e as suas consequências serão mais terríveis do que as daquele crash.

Hoje, todos os sectores produtivos estão a afundar-se, torpedados na sua linha d’água. Os transportes completamente paralisados. As indústrias aeronáutica e automóvel estão suspensas no ar, condenadas a um enorme encerramento de fábricas e à demissão de centenas de milhares de trabalhadores em todo o mundo. O sector do turismo, que no Estado espanhol e na Zona Euro contribui com 18% e 10% do PIB, respectivamente, e que é igualmente importante nos EUA, na Ásia ou no norte de África, despenhou-se por uma ravina da qual levará muito tempo a sair. O aço, o cimento, o petróleo, as matérias-primas metálicas... todos estes sectores afogados na sobreprodução e no colapso da procura.

A América Latina cairá cerca de 5,2% do PIB global, o Brasil 5,3% e o México 6,6%, com o resto das economias da região a seguir um rumo semelhante. A chamada "unidade nacional" também mostra os seus grandes resultados: entre Fevereiro e Março, a fuga de capitais no cone Sul para os bancos norte-americanos e europeus chegou a 53.000 milhões de dólares, mais do dobro da saída após a crise de 2008. Em África, no Médio Oriente e em muitas partes do continente asiático, a situação é ainda pior.

Embora a dívida corporativa (não bancária) compreenda um peso brutal para as principais potências do mundo, esta cresceu 80 pontos percentuais nos países emergentes desde 2008, para 190% do PIB. O capital que financiou o "crescimento" destas nações nos anos 2000, comprando matérias-primas e dívida pública e corporativa, fugiu para locais mais seguros (ouro, títulos norte-americanos ou alemães). A lacuna nas finanças destes países será impossível de preencher e forçará muitos deles a suspender os pagamentos (default), como está a acontecer na Argentina.

A chegada de novos “corralitos” [congelamento das contas bancárias] para evitar o colapso do sistema financeiro está na agenda de muitos países ex-coloniais. Da mesma forma que as desvalorizações das suas moedas, com o consequente aumento da inflação e a depreciação dos salários. Até agora, este ano, o real brasileiro desvalorizou 28,5%, o peso mexicano 24% e o peso colombiano 18,9%, penalizados pela queda da procura por matérias-primas, as suas principais exportações. O colapso do petróleo também significou uma depreciação de 17,2% do rublo russo, enquanto o rand sul-africano perdeu cerca de 25% .10

A troca global de bens e serviços será seriamente prejudicada. A Organização Mundial do Comércio (OMC) prevê uma redução no comércio mundial este ano entre 13% e 32%, após uma contracção de 0,1% em 2019. Estes são dados assustadores que indicam a luta feroz que as potências imperialistas travarão por cada palmo do mercado. A guerra económica entre os EUA e a China entrará numa fase mais turbulenta.

A burguesia norte-americana está numa encruzilhada histórica. Os números dos quais em vão se vangloriava, o recorde de 121 meses de crescimento ininterrupto e uma taxa de desemprego oficial de 3,6%, não podem esconder o declínio da grande potência mundial, materializado repentinamente no espaço de um mês e meio. A pandemia tão-só destapou o que já estava podre.

Se o crescimento médio do PIB na era Trump foi de 2,3%, o menor dos últimos setenta anos, as previsões para 2020 de diferentes organizações, incluindo a FED, indicam uma redução entre 5 e 10%, embora esta perspectiva não esteja fechada. Kevin Hassett, consultor económico da Casa Branca, argumentou que durante o segundo trimestre o PIB pode cair entre 20% e 30%. Só os dados de março revelam uma queda de 5,4% na atividade industrial nos EUA, o número mais alto desde que existem dados históricos (no início de 1960). O uso da capacidade instalada de produção diminuiu 4 pontos, para 72,7%.

Os estrategas da burguesia estado-unidense estão desesperados para evitar perder mais terreno. Mas o mecanismo económico dos EUA é tão limitado que mesmo para obter material médico têm de recorrer — como o resto das potências ocidentais — ao mercado chinês. Foi daí que chegaram 42% das importações estado-unidenses de equipamentos de protecção individual (EPI) para o seu sistema de saúde, em Abril. As fábricas chinesas produzem agora 80% dos antibióticos do mundo e os componentes básicos de uma ampla variedade de medicamentos.

O capitalismo de Estado chinês, sui generis e em ascensão, que pode concentrar grandes recursos financeiros e produtivos nas mãos do seu aparato estatal e cobrir as suas necessidades estratégicas mais rapidamente do que outros, possui vantagens competitivas claras em relação aos EUA ou à UE. Esta crise está a mostrar isso, e não apenas no campo da saúde.

Obviamente que a China não escapará ilesa. No primeiro trimestre do ano, o PIB registou uma queda de 6,8% em relação ao ano anterior, o investimento privado em bens de equipamento contraiu 30,4%, em construção outros 17,8%, enquanto o investimento público o fez em 14,7% (tudo em taxas homólogas). As vendas a retalho também caíram 19% e as exportações sofreram uma queda homóloga de 13,4%, número semelhante ao do período seguinte à crise financeira de 2008-09.11 Em suma, o golpe foi duro.

Não obstante, no início do segundo trimestre, os números recuperaram favoravelmente. A taxa de desemprego urbano cresceu menos de um ponto percentual desde Janeiro, atingindo 5,9% em Abril. A procura por carvão para produção de electricidade, por exemplo, recuperou 20%, embora permaneça em torno de 10% a menos do que no mesmo período de 2019. De qualquer forma, as projecções mais negativas falam de que o PIB chinês podia cair 2% em 2020, número significativamente menor que o resto das potências.

Estes dados também indicam que a capacidade da China de retirar a economia global do seu atoleiro, como ocorreu após a Grande Recessão de 2008, é limitada. O regime pode novamente recorrer a medidas keynesianas e planos de estímulo, mas a sua eficácia não será como em 2008 e 2009, porque o contexto global para manter o seu pulso de exportador e receber investimentos é muito pior. Portanto, tudo indica que a luta imperialista pelos mercados aumentará significativamente.

O imperialismo estado-unidense travou uma batalha vitoriosa contra a Inglaterra após o final da Primeira Guerra Mundial e tornou-se hegemónico após a Segunda, mas desta vez enfrenta uma nova potência que mostra sinais muito mais vigorosos, tem reservas produtivas e instituições financeiras mais sólidas e conquistou uma posição privilegiada em áreas como a tecnologia, a exportação de capital e o comércio mundial.

Nestas condições gerais, é inviável que os EUA de Trump possam levar a cabo qualquer tipo de plano Marshall na Europa, nem será a Alemanha — que sofrerá a maior recessão na sua economia desde a Segunda Guerra Mundial — quem escolherá ajudar as economias do sul da Europa, como almejam os líderes reformistas. Em vez do keynesianismo, teremos o neoliberalismo 2.0.

Na Casa Branca entendem perfeitamente que a China ocupará todo o espaço que agora deixarem livre. E embora Trump e, atrás dele, a classe dominante intensifiquem a sua campanha contra Pequim por terra, mar e ar, o gigante asiático aumentará a sua influência global nos próximos anos, aproveitando as profundas divisões do bloco ocidental.

Os EUA enfrentam o avanço chinês em condições muito complexas. A sua produção industrial, antes do actual desastre, não parou de cair: se em 1970 representava 25% do PIB, este número caiu para cerca de 11% em 2019. Se no final da década de 1990 os investimentos em capital fixo e a substituição de máquinas representou cerca de 50% do total de investimentos, em 2019 foram inferiores a 30%.

A classe dominante norte-americana pressionou a deslocalização industrial para a China e outros países com baixos salários e condições de trabalho escravo. Este foi um factor muito relevante para os seus lucros estratosféricos do final dos anos noventa e início dos anos 2000, e também para o avanço da globalização económica. Mas com isto contribuiu para o desenvolvimento produtivo e tecnológico do gigante asiático.

Entre 2000 e 2015, a China passou de produzir 3% do aço do mundo para um total de 50%, e apenas entre 2011 e 2013 consumiu mais cimento do que os Estados Unidos em todo o século XX (International Cement Review). Em 1980, as exportações representavam 1% do total mundial, mas em 2018 tornou-se a principal potência exportadora com 12,8%, seguidas pelos EUA com 8,5% e pela Alemanha com 8%.

A China responde por 30% das vendas mundiais de automóveis, 43% em veículos eléctricos e 42% das vendas a retalho para transacções comerciais, para não falar a sua crescente liderança no mercado de telemóveis, de telecomunicações ou de inteligência artificial.12 Através do seu megaprojeto da "Rota da Seda", está a levar a cabo uma política agressiva de acordos internacionais para desalojar os EUA de mercados que estavam sob o seu domínio.

Graças ao superávit comercial e às suas reservas cambiais colossais, a China tornou-se a banqueira dos Estados Unidos, controlando 18,7% da sua dívida (1,18 biliões de dólares, em 2019). É claro que o regime chinês sofre grandes desequilíbrios derivados da sobreprodução latente e da sua dívida pública, corporativa e privada, que já ultrapassou os 240% do PIB e continua a aumentar. Mas a concorrência está muito pior. A dívida global dos EUA ultrapassa já os 326%.

Este é o pano de fundo em que esta batalha colossal é travada. Os apelos de Trump ao nacionalismo económico e a sua guerra alfandegária reflectem o desespero colectivo da burguesia estado-unidense. Há que deixar claro que a internacionalização da produção e das cadeias de valor não é um capricho, corresponde à tendência inata das forças produtivas, e do próprio capital, de superar o colete de forças do Estado nacional e a propriedade privada dos meios de produção.

A guerra económica rebenta devido às contradições insuportáveis ​​do capitalismo no seu estágio de decadência senil. Mas aprofundando-se, aumentará os custos de produção nos EUA, China e Europa, com um forte impacto em mercados absolutamente interdependentes. Por exemplo, a China vendeu no sector automóvel dos EUA 250.000 milhões de dólares em veículos em 2018. Mas o gigante asiático é o quarto maior mercado para exportações agrícolas dos EUA (9.300 milhões de dólares em 2018).

77% do que os EUA importam da China corresponde a produtos semi-facturados usados ​​para produzir mercadorias nas indústrias estado-unidenses. E vice-versa, entre 2011 e 2016, as compras chinesas de tecnologia no mercado mundial foram repartidas entre três dos seus rivais directos: 27% provenientes dos Estados Unidos, 17% do Japão e 11% da Alemanha. Na China são produzidos 75% dos smartphones e 90% dos computadores, mas 87% da electrónica e 60% da maquinaria chinesa são fabricados por empresas com capital estrangeiro, muitas delas dos Estados Unidos. É fácil imaginar o que implicaria um bloqueio comercial em larga escala.

Trump convoca as empresas estado-unidenses a desmantelar as suas instalações na China e trazê-las de volta para a pátria das “Estrelas e Faixas”. Mas isto é mais fácil de dizer do que de fazer. Contra si tem as dimensões que adquiriu a concentração de capital nas suas grandes empresas financeiras e industriais e o desembolso estratosférico de capital fixo que implicaria uma operação desta magnitude — precisamente quando as empresas se preparam para uma queda geral dos seus lucros. Mas precisam de fazer alguma coisa e, obviamente, a conta será paga pela classe trabalhadora norte-americana.

O capitalismo criou uma divisão internacional do trabalho e um mercado mundial do qual nenhuma economia nacional pode desvincular-se. A autarcia e o nacionalismo económico constituem um sonho reaccionário, como se comprovou nos anos trinta do século passado, e por detrás dele esconde-se o mais agressivo dos imperialismos.

A pretensão de reverter a roda da história, empregando esta demagogia populista e reaccionária, reflecte até que ponto chegaram as contradições capitalistas: a abundância de mercadorias e serviços, em vez de ser um meio para satisfazer as necessidades humanas, torna-se a fonte da crise, da destruição de empregos, da miséria e da pobreza.

As forças produtivas amadureceram tanto que não podem mais ser contidas nos limites impostos pelas formas actuais de propriedade. Esta é a lição mais clara da crise actual e confirma a análise marxista. O problema é, portanto, quem domina estas forças produtivas e as organiza: o capital financeiro, com o resultado que se apresenta diante dos nossos olhos, ou a classe trabalhadora, para planificá-las racionalmente para benefício da humanidade. Ou barbárie imperialista, ou socialismo. Estas são as únicas opções.

Construir uma alternativa revolucionária para expropriar os expropriadores

A classe trabalhadora enfrenta ataques aos seus direitos e condições de vida a uma escala apenas vista nos anos trinta do século passado. Os esmagadores dados de desemprego e miséria produzidos pelas organizações internacionais não deixam margem para dúvidas.

Segundo o último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as horas de trabalho perdidas no segundo trimestre no mundo equivalem à destruição de 305 milhões de empregos, assumindo uma semana de trabalho de 48 horas. A agência estima que 1.600 milhões de trabalhadores pertencentes à economia informal correm o risco de perder as suas fontes de rendimentos, ou seja, quase metade da população economicamente activa, que é de 3.300 milhões. Na Europa e Ásia Central, estima-se que o risco de pobreza atinja 70% destes trabalhadores. Em África, aumenta para 83%, nas Américas, para 84%, e na Ásia e no Pacífico, para 36%.

Uma projeção do Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sua sigla inglesa) calcula que cerca de 265 milhões de pessoas estarão sob ameaça séria de fome. Um número que pode ficar aquém, dado que 3.400 milhões de pessoas viviam com menos de 5,5 dólares em 2018, de acordo com dados do Banco Mundial.

Tratando da principal potência mundial, na primeira semana de Maio, 3,17 milhões de estado-unidenses solicitaram o subsídio de desemprego, somando mais de 33 milhões nas últimas seis semanas, segundo dados do Departamento de Trabalho do país. A taxa de desemprego nos Estados Unidos subiu mais de dez pontos percentuais, chegando a 14,7% em Abril, que é o maior aumento mensal da história, com 20,7 milhões de empregos destruídos em apenas um mês e meio. Dados do Departamento do Trabalho informam que 7,7 milhões de empregos foram destruídos no sector do turismo e hotelaria, 2,1 no comércio e 1,3 na manufactura. Estes números excedem os do crash de 1929.

Os mesmos registos repetem-se noutros países avançados da Europa. No caso do Estado espanhol cerca de 9 milhões de trabalhadores estão em situação de desemprego neste momento (contando os 4 milhões que estão lay-off e o milhão de freelancers que estão a auferir subsídios). O ano pode acabar com uma taxa de desemprego superior a 40%.

As cenas das filas de fome nas nações onde estas imagens tinham desaparecido da memória colectiva são impressionantes. Os serviços sociais estão totalmente sobrecarregados e os planos de contingência dos Estados para enfrentar uma catástrofe destas proporções são ridículos.

A burguesia já prepara uma ofensiva contra os salários que, se sofreram uma enorme machadada na última década, afundar-se-ão ainda mais agora. O limite de sobrevivência será rebaixado, empobrecendo a classe trabalhadora no activo, sem falar da que será lançada no desemprego forçado, confirmando a lei geral da acumulação capitalista que Marx expôs n’O Capital: quanto maior a riqueza social, tanto maior será o exército industrial de reserva; quanto maior o exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo geral.

Os governos do mundo planificam um desconfinamento à medida das grandes empresas, sem se preocuparem minimamente com a vida das pessoas. Nestes meses de pesadelo, e naqueles que se seguirão, tornou-se evidente como a economia de mercado retarda e impede uma solução sanitária aceitável: até a busca por uma nova vacina está sujeita à lei do lucro máximo.

Sob o capitalismo, a cooperação é impossível se tal significar que se registam prejuízos nos livros de contas. Só este ano, as expectativas de facturação da indústria farmacêutica global aproximam-se do 920 mil milhões de dólares, valor referente apenas aos medicamentos de prescrição, fornecidos em hospitais ou comprados em farmácias com receita médica. Se forem adicionados os de venda livre, a facturação total excede 1,43 biliões de dólares (1,32 biliões de euros, mais do que o PIB do Estado espanhol).

Por que razão não há ainda uma vacina disponível? A resposta é óbvia: porque cada multinacional está lançada numa corrida para chegar primeiro e registar uma patente que lhe garanta uma fortuna. Os avisos dos virologistas sobre uma possível segunda onda, com o aumento do número de mortos e um colapso adicional dos sistemas de saúde, são uma questão secundária perante os lucros multimilionários de uma indústria dominada por um punhado de monopólios.13

Num momento de tamanha importância, que os líderes reformistas da nova esquerda façam apelos para um New Deal ou para um Plano Marshall que nos tire deste buraco parece uma piada de mau gosto. Como é que se pode ser tão cego? Como se pode contribuir desta maneira para propagar a confusão nas fileiras da classe trabalhadora?

As formações da nova esquerda reformista, como o Podemos, o Syriza, o Bloco de Esquerda, Die Linke e outros, prometeram-nos que, uma vez no governo, conseguiriam pôr a oligarquia em ordem. Rejeitaram o programa do marxismo revolucionário, substituindo-o por uma mistura de ideias pequeno-burguesas "radicais" a favor da democracia avançada e do controlo dos mercados, que levam a um lugar bem conhecido: fazer um capitalismo de rosto humano, algo que a experiência prática já refutou.

A burguesia utiliza o seu Estado para se salvar a si mesma e esmagar o povo, e dá-se a uma certa caridade unicamente enquanto isso não afecta os seus interesses fundamentais. Mas nós não queremos caridade nem filantropia, nem as minguantes sobras da riqueza que geramos com o nosso trabalho e esforço. Queremos que as nossas necessidades urgentes sejam resolvidas de uma vez por todas.

Tudo o que adormece a nossa consciência, a nossa capacidade de luta e organização é munição para os nossos inimigos. A política de colaboração de classes é um cancro na esquerda, e há que combatê-lo erguendo uma alternativa socialista consequente, que encare os factos de frente e proponha uma solução realista para a catástrofe que nos ameaça.

Já basta de apelar ao mal menor, de tentar administrar as migalhas que caem da mesa dos poderosos e apresentá-las como políticas sociais de ruptura. O que precisamos é de colocar as forças produtivas mundiais sob a direcção da classe trabalhadora, que a classe trabalhadora tome o poder, substituindo a plutocracia parasitária. Temos que expropriar os expropriadores, nacionalizar os meios de produção, o sistema financeiro, as indústrias farmacêutica e da saúde, sob a gestão e controlo democrático dos trabalhadores. Esta é a única maneira de enfrentar o caos actual em benefício da população, combatendo o desemprego e a pobreza.

Os eventos que estamos a viver vão abalar a consciência de milhões e abrir o caminho às ideias do marxismo revolucionário, tornando-as poderosas no contacto com a experiência viva da nossa classe. Não temos tempo a perder. Hoje, a ameaça de uma descida aos infernos está a bater com toda a força à nossa porta. Não podemos subestimar as forças da reacção, que escondem as suas armas com a certeza de que a crise do parlamentarismo burguês lhes abre também o caminho. Acreditar que políticas pró-capitalistas podem travar ou derrotar estas forças, ou que o regime actual é o seu antídoto, é faltar à verdade e virar as costas à experiência histórica.

A luta de classes dos próximos meses e anos entrará numa fase explosiva. O que o ano passado nos ensinou com a revolução chilena, as insurreições no Equador, no Sudão, na Argélia, as grandes greves na Colômbia e em França, as mobilizações massivas da mulher trabalhadora, da juventude contra as mudanças climáticas, dos pensionistas, do povo catalão pela a república e pela autodeterminação... é uma amostra do que está por vir.

Está na hora de nos prepararmos seriamente para as grandes batalhas; precisamos de construir um partido revolucionário que esteja ligado aos trabalhadores nas suas lutas, que promova o sindicalismo combativo, que organize jovens precários e explorados, os mais oprimidos, as mulheres trabalhadoras e os jovens estudantes. É hora de construir uma organização que possa resistir às pressões com o programa do marxismo e lutar decisivamente pela transformação socialista da sociedade.

Junta-te à Esquerda Revolucionária!

 



Notas:

1. https://www.imf.org/es/Publications/WEO/Issues/2020/04/14/weo-april-2020

2. Um derivado financeiro, ou instrumento derivado, é um produto financeiro cujo valor é baseado no preço de outro activo. Existem derivados de produtos agropecuários, metais, produtos energéticos, moedas, acções, índices de acções, taxas de juro, etc. São liquidados numa data futura e podem ser transaccionados em mercados organizados (como as bolsas) ou secundários (OTC). Num mercado OTC, todos os tipos de instrumentos financeiros (acções, títulos, matérias-primas, swaps ou derivados de crédito) são negociados directamente entre duas partes.

3. “El ascenso vertiginoso del poder de la banca en la sombra: el caso de BlackRock”, Manuel Gabarre
https://www.lamarea.com/2020/02/06/el-ascenso-vertiginoso-del-poder-de-la-banca-en-la-sombra-el-caso-de-blackrock/

4. V. I. Lenin, O imperialismo, fase superior do capitalismo.

5. “Covid-19, el petróleo, el virus de Wall Street y Estados Unidos”, Tom Kucharz, Luis González Reyes, Ivan Murriay Mas e Luis Flores. https://www.elsaltodiario.com/coronavirus/covid-19-petroleo-virus-wall-street-estados-unidos-colapso-pico-mercados-financieros-decrecimiento

6. Rosa Luxemburgo, Reforma ou Revolução.

7. 82% do terceiro pacote de ajudas de Trump na pandemia será para os ricos e as grandes empresas.
https://www.publico.es/politica/ayudas-trump-82-tercer-paquete-ayudas-trump-pandemia-sera-ricos-grandes-empresas.html 

8. León Trotsky, "El marxismo en nuestro tiempo", em Fundamentos de economía marxista, Fundación Federico Engels. Madrid, 2019, p. 50.

9. Ibid, p. 60

10. “Actualidad Emergentes”, Abril 2020.
https://www.bankiaestudios.com/estudios/es/publicaciones/actualidad-emergentes-abril-2020.html

11. “China / Fuerte contracción del PIB en el 1T20 a causa del virus”.
https://www.bankiaestudios.com/estudios/es/publicaciones/china-fuerte-contraccion-del-pib-en-el-1t20-a-causa-del-virus.html

12. Segundo o relatório China and the world: Inside a changing economic relationship, do McKinsey Global Institute.

13. “As dez principais empresas representam cerca de 40% do mercado mundial, com uma facturação de 437.257 milhões de dólares (404.812 milhões de euros) em 2017 (…) À frente deste oligopólio está a gigante estado-unidense Pfizer, cujos produtos farmacêuticos registraram 52.540 milhões de dólares (48.630 milhões de euros) naquele ano. O segundo lugar é ocupado pela suíça Roche, com 44.368 milhões de dólares (41.110 milhões de euros), e o terceiro no pódio é a francesa Sanofi, com 36.663 milhões de dólares (33.971 milhões de euros). (Vicente Calvero, Industria farmacéutica: un negocio de más de un millón de euros, que engorda gracias al coronavirus.)
https://www.publico.es/economia/industria-farmaceutica-negocio-billon-dolares-engorda-gracias-coronavirus.html

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