No passado dia 2 de abril celebrou-se o 45º aniversário da aprovação da Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976. Este documento é permanentemente referido por setores da esquerda parlamentar como o Alfa e o Ómega — o princípio e o fim — de toda a política de esquerda, como a garantia de todas as “Conquistas de Abril” e, portanto, como o que há de mais importante para a classe trabalhadora e todos os oprimidos defenderem. Esta forma de ver a CRP corresponde a uma política reformista, alheia ao marxismo, que procura manter toda a luta centrada nas instituições do Estado burguês.

O que é, afinal, a Constituição?

Poderia definir-se uma Constituição, muito sinteticamente, como o mais importante conjunto de leis, normas e regras de um país, a lei que regula e organiza o funcionamento do Estado. Ou seja, uma Constituição seria a “lei máxima”, capaz de determinar a forma do próprio Estado, e nenhuma outra lei poderia contrariá-la. Mas esta interpretação não é apenas a mais básica e fácil de encontrar, é, acima de tudo, a interpretação da classe dominante. Para os marxistas, a Constituição é um reflexo da sociedade, não é a sociedade um reflexo da Constituição. Como todas as leis, uma constituição é produto das relações entre as classes num momento determinado, e mostra a forma de dominação burguesa em vigor.

A CRP de 1976 é isto mesmo, o produto da acirrada luta de classes que se verificou na Revolução Portuguesa de 1974-75. O colapso do fascismo foi o colapso de uma forma de dominação, e a classe dominante teve de encontrar uma nova forma de dominação, não de acordo com a sua vontade, mas de acordo com as necessidades. Uma vez encontrada essa forma — que foi a democracia burguesa —, ela foi apresentada por escrito, como Constituição.

A burguesia portuguesa precisou de travar uma sangrenta guerra com o proletariado até conseguir recuperar o controlo do exército e garantir pela força o essencial: o direito à propriedade privada. A partir daí, a burguesia teve todo o interesse em acelerar o processo constituinte, transferindo para o seu Parlamento e para o seu Estado a gestão das contradições sociais, económicas e políticas.

Mas para os trabalhadores das cidades e dos campos — forçados a combater a fuga de capitais, bens e equipamentos iniciada desde cedo pelo patronato e latifundiários —, a reivindicação mais urgente não era a Assembleia Constituinte. A defesa das condições básicas de vida, de trabalho, habitação, educação e saúde, foi o que levou a um amplo movimento de ação e participação, capaz de envolver largas camadas de trabalhadores na revolução, dispostos a tomar o destino nas suas próprias mãos. As Comissões de Trabalhadores e de Moradores eram palco de intenso debate e ação, procurando um programa político que desse coerência global ao empenho e combatividade com que a classe trabalhadora e a juventude enfrentavam o patronato.

Partidos e ação política

Os setores mais reacionários e ultramontanos dos latifundiários, da grande burguesia e altas patentes do fascismo, bem como a generalidade da hierarquia da Igreja Católica, fugiram do país com a revolução ou começam desde cedo a preparar terreno para o regresso a um regime autoritário, organizando-se em torno de António de Spínola no MDLP-ELP. O primeiro ano da Revolução foi marcado por duas tentativas de instauração de um regime bonapartista autoritário por parte destes setores. A primeira foi a Manifestação da Maioria Silenciosa, a 28 de setembro de 1974, e a segunda a tentativa de golpe militar de 11 de março de 1975.

Mas uma parte considerável da burguesia e dos seus representantes políticos entendeu rapidamente a impossibilidade de regressar ao fascismo e a necessidade, como dissemos, de encontrar uma nova forma de dominação. Isto não foi feito sem muita mentira e ginástica ideológica. O Centro Democrático Social (CDS) dizia defender o “socialismo cristão”, e agrupou uma franja de tecnocratas e liberalizadores do antigo regime. E o PPD — mais tarde chamado PSD — formou-se como o partido da burguesia, abarcando a ala liberal da extinta Ação Nacional Popular, com Sá-Carneiro, Pinto Balsemão e Miller Guerra, entre outros. No seu manifesto, defendia o “socialismo reformista”, com o horizonte do “fim das classes”, tentando captar setores das massas, especialmente camponeses do norte e centro do país.

O PS — fundado no ano anterior na República Federal Alemã, sob os auspícios de Willy Brandt —, acabaria por ser o principal instrumento da burguesia, mas não sem uma dura luta. No seio deste partido desenvolveu-se uma corrente de esquerda, e a dinâmica da luta de classes no primeiro ano revolucionário fê-lo reivindicar frequentemente o marxismo, com palavras de ordem como “Partido Socialista, Partido Marxista”. No seu 1º Congresso, a ala esquerda ganha um terço dos votos, mas ao invés de partir dessa base para a disputa do partido, decide sair e formar a efémera Frente Socialista Popular. A capitulação desta ala permite à camarilha de Mário Soares deixar cair definitivamente o marxismo. A palavra de ordem do “Socialismo em Liberdade” é usada então para ganhar camadas operárias e o grosso da pequena-burguesia do norte e centro do país.

O PCP emergiu da clandestinidade, durante a Revolução, com o seu peso histórico de lutador anti-fascista. Foi abraçado, de imediato, por milhares e milhares de trabalhadores, com especial força em Lisboa e Setúbal, bem como no Ribatejo e Alentejo. O que defendeu como “via portuguesa para o Socialismo” foi a “Aliança POVO-MFA”, ou seja, a colocação do exército à cabeça da classe trabalhadora, procurando levar todos e cada um dos órgãos de poder proletário a ser tutelados pelo Conselho da Revolução. Por fim, Cunhal e os restantes dirigentes deste partido foram os mentores do pacto MFA-Partidos, procurando, e conseguindo, que a passagem à democracia burguesa fosse igualmente tutelada pelo Conselho da Revolução.

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Cerimónia de abertura da Assembleia Constituinte a 2 de junho de 1975. Atravessou dois períodos distintos da luta de classes, o “Verão Quente” e o pós-golpe contra-revolucionário de 25 de novembro de 1975, o que se refletiu na CRP.

A Assembleia Constituinte

As eleições para a Assembleia Constituinte realizam-se a 25 de abril de 1975 e deram uma maioria ao PS, com 2.162.000 votos e 116 deputados (37, 87%), o PPD com 1.507.000 votos e 81 deputados (26.39%), o PCP com 711.000 votos e 30 deputados (12,61%), o CDS com 434.000 votos e 16 deputados (7, 61%), o MDP com 236.000 votos e 5 deputados (4,14%), a UDP com 45.000 votos e 1 deputado (0,79%) e a ADI de Macau, com 1.622 votos e 1 deputado (0,03%).

A Assembleia Constituinte funcionou de 2 de junho de 1975 a 2 de abril de 1976, ou seja, atravessou dois períodos distintos da luta de classes, passando tanto pelo auge da Revolução (o chamado “Verão Quente” de 1975) como pelo período após o golpe contra-revolucionário de 25 de novembro. Isto, inevitavelmente, refletiu-se na CRP. O documento final reafirmava as nacionalizações e cada um dos avanços da Revolução, como a gratuitidade da saúde e da educação — para a burguesia, atacar frontalmente estas conquistas em 1975 e 1976 seria provocar um novo levantamento com consequências imprevisíveis. Mas isto não muda o caráter fundamental do documento: é uma Constituição burguesa e, como tal, consagra o direito à propriedade privada acima de qualquer outro. A partir desta sólida base, a classe dominante restabeleceu o seu domínio e apagou, com cada revisão constitucional, os elementos mais incómodos e progressistas da CRP.

PCP — coerentemente reformista

Durante a Revolução, o PCP defendeu intransigentemente a Aliança POVO-MFA e a “via portuguesa para o socialismo”, que mais não era do que o “socialismo de mercado”, ou seja, uma economia capitalista com os setores fundamentais nacionalizados. Sabendo de antemão que Portugal não poderia sair da esfera do imperialismo estado-unidense a não ser pela via de uma revolução socialista extremamente inconveniente para a burocracia de Moscovo — plenamente comprometida com a détente, como mostrava a visita de Brejnev a Washington em 1973, e os seus acordos com o então presidente Nixon.

O PCP foi, de resto, absolutamente coerente com o programa político aprovado no seu VI Congresso, realizado em Kiev, em 1965, e reafirmado no Congresso de 1974: o programa da “Revolução Democrática Nacional”, ou seja, a teoria tipicamente stalinista das etapas. O programa definiu oito objetivos:

(1) “destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático”;
(2) “liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico geral”;
(3) “realizar a reforma agrária entregando a terra a quem a trabalha”;
(4) “elevar o nível de vida das classe trabalhadoras e do povo em geral”;
(5) “democratizar a instrução e a cultura”;
(6) “libertar Portugal do imperialismo”;
(7) “reconhecer aos povos das colónias o direito à imediata independência”;
(8) “seguir uma política de paz e amizade com todos os povos”.

O seu horizonte foi — e é — o da democracia burguesa e nada mais.

Este programa é complementado pelo VII Congresso, em outubro de 1974, com uma Plataforma de Emergência contendo medidas fundamentais para a defesa e desenvolvimento da Revolução e para a instauração de um regime democrático, tendo como direções capitais “o reforço do estado democrático e a defesa das liberdades”; “a defesa da estabilidade económica e financeira com vista ao desenvolvimento”; “o prosseguimento da descolonização”.

Ora este programa — que sintetiza a constituição de uma democracia parlamentar burguesa — significa, no contexto de uma revolução socialista, o combate a todas as iniciativas e ações da classe trabalhadora que coloquem em cima da mesa a superação revolucionária do capitalismo. Os constantes choques com as massas que teve o PCP durante os meses revolucionário são perfeitamente coerentes com a sua política tal como ela foi exposta nos documentos oficiais dos congressos. Não há aqui qualquer segredo. O PCP lutou sempre pela consolidação e pela estabilidade da ordem democrática burguesa.

Assim se compreende o cuidado que tem, até mesmo hoje, no ataque à radicalização das ações dos trabalhadores que, segundo dizem os dirigentes do partido, “favoreciam, objectivamente, a reação”. Assim se entende também a iniciativa de propor um pacto MFA-Partidos como base da “Aliança Povo-MFA” — pacto que teve a aprovação e subscrição de todos os partidos burgueses, evidentemente.

Nesse pacto, com a institucionalização do MFA e a criação do Conselho da Revolução, o PCP erige o organismo capaz de fazer a mediação de interesses entre os variados setores da burguesia, a pequena-burguesia e o proletariado, um órgão para gerir um regime bonapartista no processo de transição para a democracia burguesa.

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Cunhal assina o pacto MFA-Partidos a 11 de abril de 1975. Ele e os restantes dirigentes do PCP foram os mentores do pacto, que foi aprovado e subscrito por todos os partidos burgueses.

O 25 de novembro e a recuperação capitalista

No dia 25 de novembro de 1975 dá-se o golpe contra-revolucionário através do qual a burguesia termina o saneamento dos elementos de esquerda na oficialidade do exército e recupera o seu controlo sobre esse órgão de repressão. Perante este golpe, a Comissão Política do Comité Central do PCP emite uma nota insistindo numa “solução política negociada”. Os militantes comunistas são mandados para casa com um pedido de “grande serenidade e grande confiança no futuro”, considerando que qualquer tentativa de tratar o golpe só poderá comprometer a democracia e precipitar um novo regime fascista. Assim se rendia a maior e mais importante organização da classe trabalhadora, seguindo um programa reformista completamente estéril.

Neste quadro de reequilíbrio da burguesia, com um novo Conselho da Revolução depurado de todos os elementos de esquerda e, portanto, já abertamente contra-revolucionário, a CRP é aprovada, a 2 de abril de 1976.

As marcas do período anterior são visíveis, por exemplo, no artigo 2º, que declarava como objetivo da República “assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras", ou no Artigo 83º, nº 1 que declara que “Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras”.

No entanto, como dissemos, as constituições são o retrato de uma dada relação de forças entre classes, num dado momento. A burguesia já extirpou da CRP estas duas passagens tão inquietantes.

A nossa luta é por um futuro sem exploração, não é pelo regresso a um passado menos mau! É pelo socialismo, não por um capitalismo “mais humano”!

As constantes alusões à CRP e a nostalgia de um tempo menos mau são, não só inúteis, como mistificadoras O PCP — e o BE, que levanta a CRP exatamente da mesma forma —, ao concentrarem a sua política neste documento, estão a estabelecer como objetivo final o aperfeiçoamento do regime democrático burguês.

A CRP é um produto da luta de classes, tal como as revisões que sofreu. A profunda crise que o capitalismo atravessa hoje, e que anima a ofensiva desesperada dos capitalistas à escala mundial, significa, sem dúvida alguma, uma série de ataques aos direitos democráticos que foram conquistados com a Revolução de 1974-75. Mas nenhum desses direitos foi conquistado na luta pela instauração da democracia burguesa, e nenhum deles será defendido numa luta pela preservação dessa democracia completamente podre. O fascismo caiu com uma revolução que se orientava para o socialismo, e foi apenas sob a ameaça de perder tudo que a burguesia se adaptou a este regime.

Hoje, contra a extrema-direita e contra todos os ataques que sofremos, não precisamos de um regresso à CRP de 1976. Precisamos, isso sim, de um regresso à luta revolucionária, e de levar essa luta até ao fim, com um programa que afirme intransigentemente a independência política da classe trabalhadora, rompa completamente com o capitalismo e a democracia burguesa e coloque como objetivo o socialismo e a democracia proletária.

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