No início deste ano tanto o Partido Socialista[1] como o Chega[2] apresentaram propostas de resolução na Assembleia da República sobre o combate ao antissemitismo, alinhadas com a estratégia da União Europeia (UE). Ambas defendem a adoção da definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA)[3], e, por consequência, dos exemplos que apresenta de antissemitismo, entre os quais:

  • “Negar ao povo judeu o seu direito à autodeterminação, por exemplo, afirmando que a existência de um Estado de Israel é um projeto racista.”

  • “Aplicar dois pesos e duas medidas, exigindo-lhe [Israel] um comportamento não esperado de outras nações democráticas.”

  • “Estabelecer comparações entre a política israelita contemporânea e a dos nazis.”

Na verdade estes são exemplos de antissionismo, que se imiscuem entre exemplos claros de antissemitismo, como o negacionismo do Holocausto ou teorias conspiratórias sobre dominação mundial. Ao confundir críticas ao Estado de Israel sionista com ataques aos judeus, a própria IHRA entra em flagrante contradição com o seu derradeiro exemplo de antissemitismo: “responsabilizar coletivamente os judeus pelas ações do Estado de Israel”.

É crucial não só rejeitar estas propostas, mas também denunciar a estratégia europeia que, sob o pretexto de combater o antissemitismo, o perpetua.

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Ao confundir críticas ao Estado de Israel sionista com ataques aos judeus, a própria IHRA entra em flagrante contradição com o seu derradeiro exemplo de antissemitismo.

O que é o antissemitismo hoje?

O que explica, então, a continuação do antissemitismo nos dias de hoje? Essa pergunta não pode ser respondida de um ponto de vista meramente moral – é preciso analisá-la materialmente: o que alimenta esse ódio? A resposta é a política do Estado de Israel.

Desde a sua fundação, Israel funciona como a ponta-de-lança do imperialismo no Médio Oriente. Seja nas suas ofensivas militares ou no trabalho furtivo de espionagem e sabotagem, Israel tem sido um instrumento central na repressão dos movimentos revolucionários da região e na manutenção dos regimes opressores. É por isso que se tornou alvo do ódio da classe trabalhadora do Médio Oriente e, por extensão, de movimentos socialistas em todo o mundo.

Israel sempre procurou ativamente confundir antissemitismo com antissionismo, judeus com Israel. Apresenta-se como defensor dos interesses judaicos a nível global – quando, na realidade, nunca o foi – e como a representação institucional dos judeus. Longe de ser um aliado na luta contra o antissemitismo, Israel é o principal responsável pela sua perpetuação.

A União Europeia criminaliza o antissionismo

A UE publicou o documento “Estratégia da UE para Combater o Antissemitismo e Apoiar a Vida Judaica (2021-2030)”[4] em outubro de 2021, e o primeiro relatório sobre a sua implementação em outubro de 2024.

O relatório justifica a sua existência com um suposto aumento do antissemitismo na Europa, mas não apresenta provas concretas, apenas perceções de insegurança reportadas por judeus. Aponta que a expressão mais frequentemente reportada é “os israelitas comportam-se como nazis para com os palestinianos” — uma afirmação antissionista, mas não antissemita.

De resto, o relatório não faz qualquer tentativa de distinguir antissionismo e antissemitismo — pelo contrário, insiste em colar a resistência política a Israel ao antissemitismo. Refere (pág. 5) que “a hoje forma mais comum de antissemitismo” está “relacionada com Israel”, insistindo na necessidade de incluir Israel nos esforços contra o antissemitismo e propondo mesmo “visitas de estudo” (pág. 14). Tal como Israel, a UE pretende confundir os dois termos.

O verdadeiro objetivo destas diretrizes é claro: ilegalizar a luta palestiniana e a crítica ao Estado de Israel, equiparando-as indevidamente a discurso de ódio. Não é coincidência que estes documentos tenham sido publicados após ofensivas israelitas contra a Palestina, que geraram fortes mobilizações internacionais contra o genocídio. 

Por detrás encontra-se a posição estratégica de Israel para a UE. A União Europeia não só é o maior parceiro comercial de Israel (46,8 mil milhões de euros em 2022), como também depende da sua tecnologia militar e dos seus sistemas de vigilância para o controlo das fronteiras europeias[5]. Empresas israelitas estão envolvidas em operações de ciberespionagem contra ativistas e jornalistas europeus[6], reforçando o caráter repressivo desta aliança. Desde o início da guerra na Ucrânia, esta parceria tem-se aprofundado ainda mais, com a UE assinando em 2022 um acordo para importar gás israelita via Egito, numa tentativa de substituir o fornecimento energético russo[7].

O relatório aproveita ainda para atacar comunidades muçulmanas europeias, acusando-as de antissemitismo. Na pág. 24, cita um estudo da Liga Antidifamação (ADL) afirmando que 74% das pessoas no Médio Oriente/Norte de África adotam atitudes antissemitas, elogiando a “normalização das relações entre Israel e alguns países da região”. A ADL, organização explicitamente pró-Israel e ligada ao Partido Republicano dos EUA, tem um claro viés reacionário, desde ataques contra o Nelson Mandela nos anos 80 até à recente defesa de Elon Musk após este fazer uma saudação nazi. A sua credibilidade é nula.

Há décadas que organizações como a ADL insistem que o antissemitismo é omnipresente na Europa, mas as suas metodologias são defeituosas e nunca seriam aceites para estudar racismo, sexismo ou queerfobia. Enquanto entidades ao serviço de Israel monopolizarem o estudo do antissemitismo, nunca haverá dados fiáveis.

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Desde a sua fundação, Israel funciona como ponta-de-lança do imperialismo no Médio Oriente, um instrumento central na repressão dos movimentos revolucionários da região e na manutenção dos regimes opressores.

Criminalização do movimento antissionista em Portugal pelas mãos do PS e do Chega

Tal como a UE, com as suas propostas o PS e o Chega procuram atacar a comunidade muçulmana, que já enfrenta uma crescente discriminação em Portugal com os ataques do governo e da extrema-direita. Enquanto o PS é mais dissimulado, o Chega é abertamente racista, afirmando que “a imigração muçulmana tem, sem dúvida, sido uma das razões do ódio anti-judaico no Ocidente”.

Mas o principal foco de ambos é reprimir a esquerda antissionista, cujo movimento abalou as classes dominantes globalmente e também teve expressão em Portugal com manifestações e acampamentos estudantis em várias universidades[8]. Isso é claro quando o Chega aponta como exemplo de antissemitismo a manifestação antissionista de 22 de Maio de 2024 em frente ao cinema São Jorge contra o branqueamento dos crimes do Estado sionista genocida. 

A Esquerda Revolucionária participou nesse protesto, juntamente com várias outras organizações, nomeadamente o coletivo judaico antissionista Vozes Judaicas Pela Paz e podemos confirmar que nada de antissemita ali se passou. Qualquer incidente antissemita é inaceitável e deve ser combatido, tal como qualquer outro tipo de racismo. Exemplos sim do odioso racismo do Chega para com muçulmanos e imigrantes asiáticos não faltam, incluindo o discurso de ódio para com imigrantes marroquinos depois dos pogroms organizados por fascistas em Torre-Pacheco, Múrcia, no Estado espanhol [9]. Que se esconda atrás da bandeira do antessimitismo para o continuar a propagar é o cúmulo da hipocrisia!

Já a proposta do PS chega a listar a “negação do direito do Estado de Israel a existir” como um ato antissemita. Esta é a continuação da política de branqueamento seguida pelo governo de Costa durante os primeiros meses de genocídio em Gaza, evitando qualquer afronta a um regime que se mantém como destino de exportação para 930 empresas portuguesas[10]. Desde animais vivos a celulose e papel, passando pelo armamento, Portugal tem vindo, desde 2021, a superar até a Alemanha na venda de armas para Israel[11].

Estas propostas têm de ser combatidas nas ruas antes que sejam usadas contra nós.

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O verdadeiro objetivo destas diretrizes europeias é claro: ilegalizar a luta palestiniana e a crítica ao Estado de Israel, equiparando-as indevidamente a discurso de ódio.

A luta contra todas as opressões é a luta pelo socialismo!

A luta contra o antissemitismo tem de começar por quebrar o vínculo propagandístico entre sionismo e judaísmo, desmontando a ideia de que oposição a Israel significa ódio aos judeus. É necessário libertar o judaísmo do sionismo, que o instrumentaliza para oa seus próprios fins, e que conta com o antissemitismo gerado como um capital político a seu favor.

E é também necessário combater Israel e a sua política genocida em toda a sua extensão. Como Abram Leon previu [12], o Estado sionista não passa de uma ferramenta imperialista no Médio Oriente. Não possui uma independência política real e a sua existência apenas tem servido para agravar as condições de vida dos judeus. A sua queda e o fim das suas guerras permanentes serão passos fundamentais para a segurança e bem-estar dos judeus na Palestina e no resto do mundo.

A luta antissionista não é apenas uma luta contra o colonialismo israelita – é também uma luta pela vida judaica. E essa realidade está a tornar-se cada vez mais evidente com a ascensão de movimentos de juventude judaica antissionista, tanto na Palestina como no resto do mundo, erguendo a sua voz em solidariedade com o povo palestiniano.

O levantamento da juventude judaica antissionista é um avanço extraordinário na luta de classes, e deve ser saudado e fomentado. Ao rejeitar a instrumentalização sionista da identidade judaica, esta geração resgata a tradição socialista revolucionária do povo judeu, compreendendo que a verdadeira segurança não virá do militarismo, mas da solidariedade internacional. Na luta pelo fim do sionismo e pela libertação da Palestina, traçam o caminho para erradicar o antissemitismo e fazer florir a vida judaica num mundo livre de toda a opressão.

Viva o movimento da juventude judaica antissionista, antifascista e anticapitalista! L’chaim!


Notas:

[1] Projeto de Resolução 618/XVI/1

[2] Projeto de Resolução 729/XVI/1

[3] Organização intergovernamental à qual Portugal aderiu em 2019, coincidindo com a visita de Benjamin Netanyahu ao país.

[4] Comunicação da comissão ao parlamento europeu, ao conselho, ao comité económico e social europeu e ao comité das regiões

[5] EU’s Frontex gives seal of approval to Israeli surveillance firm

[6] Spyware firm behind new surveillance of journalists, civil society operates from the EU

[7] EU signs gas deal with Israel, Egypt in bid to ditch Russia 

[8] Sindicato de Estudantes: Mobilização estudantil pela Palestina: em cada universidade uma ação contra o genocídio sionista!

[9] Esquerda Revolucionária: Estado Espanhol | Fascistas fazem pogroms contra a população migrante com a proteção da polícia

[10] Mais de 930 empresas portuguesas exportam para Israel. Guerra já faz cair encomendas

[11] Portugal já exporta mais armamento para Israel do que a Alemanha

[12] Abram Leon - The Jewish Question

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