O coronavírus está a bater recordes trágicos no Brasil. O gigante sul-americano já soma 17 milhões de contagiados e 474 mil mortos, sendo o terceiro país do mundo mais atingido pela pandemia. Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Brasil atingirá as 940 mil mortes no final de setembro.

Com cerca de 40 mil novos casos diários, o esgotamento nos hospitais brasileiros continua alarmante. Um inquérito realizado em maio pela SindHosp — o Sindicato de Hospitais, Clínicas e Laboratórios de São Paulo — mostra que as unidades de cuidados intensivos (UCI) da cidade ainda registam uma taxa de ocupação de 78,5%. Em março, em pelo menos 12 das 50 cidades com mais de 500 mil habitantes (incluindo Rio de Janeiro, Porto Alegre e Natal), houve mais mortes do que nascimentos pela primeira vez em décadas. Ao mesmo tempo, a campanha de vacinação avança a um ritmo pírrico: apenas 10% da população recebeu as doses prescritas.

Uma gestão criminosa

A responsabilidade de Bolsonaro e do seu governo nesta catástrofe é evidente. Ao encorajar um discurso negacionista da pandemia e ao não tomar medidas para deter o avanço do vírus, este reacionário provocou uma verdadeira hecatombe social.

O país encerrou o primeiro trimestre de 2021 com uma taxa de desemprego oficial de 14,7% — o valor mais alto desde 2012 —, além disso, existem mais de 35 milhões de trabalhadores informais no Brasil. Nada menos do que 44% dos brasileiros deixaram de comer carne durante a pandemia por não terem dinheiro para a comprar. 125 milhões de pessoas, numa população de 211 milhões, sofrem de insegurança alimentar, e o índice de pobreza triplicou desde o ano passado: 12,3% da população é pobre e 20 milhões estão em situação extrema de fome. Todos estes dados explicam o regresso do Brasil ao relatório do Mapa da Fome das Nações Unidas, depois de o ter abandonado em 2014.

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A gestão de Bolsonaro provocou uma hecatombe social. O desemprego está nos 14,7%, há 35 milhões de trabalhadores informais, 125 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar e a taxa de pobreza triplicou até alcançar os 12,3%.

A renda básica que o governo teve de aprovar (600 reais por mês por apenas três meses) para reduzir a pressão e afastar as críticas a Bolsonaro, não passa de uma esmola ridícula e impotente. Entretanto, um punhado de oligarcas (5% da população) acumula 45% da riqueza nacional e no ranking mundial de multimilionários da lista Forbes 2021 encontram-se 30 brasileiros.

À catástrofe social e sanitária vem juntar-se a catástrofe económica. A recessão está a ser histórica. Em 2020, o Brasil sofreu uma queda de 4,1% do PIB, um nível que não era visto desde a brutal crise da década de 90 (-4,35%). O PIB per capita caiu 24,7% desde 2019.

A inflação homóloga acelerou para 6,76% em abril e a desvalorização do real brasileiro continua 10,2% de declínio em 2020 , a moeda é uma das que mais desvalorizaram, apenas atrás das moedas do Sudão, da Líbia e da Venezuela. Isto provoca um encarecimento drástico de todos os bens e a degradação das condições de vida da classe trabalhadora.

Fraturas no Governo e divisões na classe dominante

A política classista defendida por Bolsonaro, a política do "morre gente todo o dia de uma série de causas, é a vida" — como o próprio presidente afirmou —, é de absoluto desprezo pela saúde da população e de preservação dos benefícios da plutocracia brasileira a qualquer custo, e tem provocado uma queda da sua popularidade. O último escândalo: o Brasil alberga a Copa América 2021 apesar de viver um dos piores surtos do vírus no mundo. Segundo o último inquérito da Datafolha, o apoio a Bolsonaro caiu de 30% para 24% entre março e maio de 2021. Além disso, mais de metade dos brasileiros apoiaria a abertura, por parte do Conmgresso, de um julgamento para destituir o presidente pela sua gestão da pandemia.

A atual situação provocou uma forte crise institucional que está a afetar o bolsonarismo e o próprio aparelho de Estado. A finais de março, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, abandonava sua posição no governo, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, apresentava a sua demissão. Um dia mais tarde, confirmava-se também a destituição da cúpula militar das Forças Armadas — os chefes do Exército, a Marinha e a Força Aérea. Os conflitos entre Bolsonaro e os militares, que têm sido um dos pilares fundamentais do governo — dos atuais 22 ministros, 9 são militares reformados —, são mais um indicador da profundidade da crise política que sacode o Brasil.

Este turbilhão de demissões e cisões internas, bem como as tensões que introduz a ascensão da China na cena mundial,1 evidencia cada vez mais as divisões existentes no seio da classe dominante brasileira. A burguesia luta para manter o controlo da situação, e quando os elementos nos quais se baseou para o fazer estão seriamente questionados e já não servem, procura meios alternativos para manter a sua dominação de classe.

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O Brasil vive uma forte crise institucional, que está a afectar o bolsonarismo e o próprio aparato de Estado. As demissões e cisões dentro do governo mostram as divisões existentes no seio da classe dominante brasileira.

Desta forma, a grande burguesia e a oligarquia tradicional, que em 2018 se posicionou atrás de Bolsonaro, dirigiu uma carta ao Parlamento assinada por 1.500 banqueiros e empresários — entre eles ex-presidentes do Banco Central e membros do Conselho de Administração do Banco Itaú, o maior banco privado do Brasil — exigindo uma gestão governamental adequada para deter a deterioração da economia e da saúde brasileira. "O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito."

É evidente que um setor cada vez mais amplo da classe capitalista percebe que quanto mais Bolsonaro permanecer no governo, mais risco haverá de uma rebelião social que poderia ir muito além de exigir uma mudança presidencial, especialmente depois da dureza com que a pandemia atingiu a população.

Por isso estão a avançar com uma nova estratégia na tentativa de deter o descontentamento e o avanço da luta de classes no país. Uma estratégia com nome, apelido e uma data marcada no calendário: Luiz Inácio Lula da Silva, para as eleições gerais de 2022.

Lula 2022, colaboração de classes e bancarrota da esquerda reformista

Em meados de abril, o Supremo Tribunal Federal do Brasil ratificou a decisão de anular as condenações proferidas em primeira instância contra Lula, que já recuperou todos os seus direitos políticos. A partir desse momento, e após anunciar que ele será candidato às eleições presidenciais de 2022 contra Jair Bolsonaro, Lula iniciou uma ronda de reuniões com as formações da direita, da esquerda e também alguns sindicatos para juntar apoios à sua candidatura.

O líder do PT não hesitou em "dialogar com todos", inclusive com os três principais partidos que apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff em 2016: falou com José Sarney do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), com Rodrigo Maia, do partido Democratas (DEM), e com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi responsável pela forte ofensiva neoliberal e a privatização de várias empresas estatais durante os anos 90.

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Desde que Lula anunciou sua candidatura às presidenciais de 2022, iniciou uma ronda de reuniões inclusive com os partidos que apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff, entre os quais se encontra o burguês Henrique Cardoso.

Que a burguesia está mais do que satisfeita com o encontro entre Lula e Cardoso é óbvio. Em primeiro lugar, porque assim a classe dominante está a servir-se da direção do lulismo, que tanto lhes permitiu enriquecer — nos seus doze anos de governo, o PT renunciou a medidas socialistas, aplicou cortes e políticas em benefício dos grandes monopólios e não hesitou em pactuar com a direita —, em segundo lugar, porque está a assegurar a presença de um dos seus homens de confiança, Cardoso, nesta "alternativa democrática".

O que é verdadeiramente desastroso é que esta frente popular conte com o apoio dos dirigentes da CUT e do PSOL. "Nossas diferenças são muito menores do que o nosso dever histórico de derrotar Bolsonaro. É hora de dialogar e construir consensos, porque o que está em jogo é a democracia e a vida dos brasileiros. Parabéns a Lula e FHC pelo gesto de grandeza e responsabilidade com o país", escreveu Marcelo Freixo, que à data era dirigente e deputado do PSOL (passou, pouco depois, para o Partido Socialista Brasileiro). Seguindo esta linha, mostrando toda a sua disposição para se submeter à política da burguesia e de Lula neste momento crítico, os dirigentes do PSOL repetem como um mantra a política de colaboração de classes que abriu as portas a Temer e Bolsonaro. Abandonam a palavra de ordem da greve geral, desprezam a luta de classes para varrer o Governo direitista e adaptam-se às manobras institucionais que mais convêm ao sistema, como a via do impeachment de Bolsonaro.

A direção do PSOL limita-se a aplaudir a viragem aberta do Partido dos Trabalhadores para a direita, e fá-lo sem corar de vergonha. Esta cegueira política só conduz ao desastre! Deveriam fazer exatamente o contrário: deixar claro que, nas mãos da direita e dos representantes da burguesia, as condições de vida da população continuarão a degradar-se; deviam defender um programa de independência de classe, levantar uma alternativa de ruptura com a lógica do capitalismo e preparar o derrube de Bolsonaro através da ação das massas, fazendo um apelo também aos ativistas do PT e da CUT para ganhá-los para esta política.

Embora falte mais de um ano e nada esteja fechado, todas as sondagens apontam para a vitória de Lula nas eleições. Segundo a Datafolha, na primeira volta, o petista poderá obter 41% dos votos contra 23% de Bolsonaro e, na segunda volta, 52% contra 32%, respetivamente.

O voto de Lula e a possível derrota de Bolsonaro seriam percebidos por milhões como uma vitória. Mas a situação é bem diferente de 2003. Lula não tem a credibilidade dos seus primeiros governos, nem poderá contar com um boom económico. Pelo contrário, terá de gerir uma crise selvagem. Da mesma forma, a classe trabalhadora e a juventude não esqueceram o que significaram os mandatos petistas e a frustração que geraram. Nestes últimos anos, a consciência das massas deu um salto gigantesco.

O punho da classe operária volta a levantar-se

No dia 29 de maio realizaram-se mobilizações massivas contra o presidente sob o lema "Fora Bolsonaro genocida". Apesar dos apelos de dirigentes do PT, e infelizmente também do PSOL, a não participar por causa da situação sanitária e fazer "atos simbólicos", os oprimidos e oprimidas do Brasil protagonizaram os protestos mais massivos desde o movimento Ele Não de 2018. As manifestações de centenas de milhares nas principais cidades do país foram um grito de guerra contra este criminoso e a sua gestão da pandemia.

Apesar de durante a pandemia terem sido feitas greves importantes, como a dos estafetas ou a do metro de São Paulo, estas manifestações do 29 de maio marcam um ponto de inflexão e sobem de forma extraordinária a temperatura da luta de classes no país.

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No dia 29 de maio, sob a palavra de ordem "Fora Bolsonaro genocida", realizaram-se os protestos mais massivos contra o presidente desde o movimento Ele Não, em 2018, apesar das tentativas de desmobilização levadas a cabo pelo PT e pelo PSOL.

Há que continuar por este caminho. A vontade de lutar existe e a determinação das massas para derrubar Bolsonaro está mais do que comprovada. A classe operária brasileira, os jornaleiros do campo, a juventude, os pobres das favelas expressaram a sua raiva, trata-se agora de a organizar, pondo em marcha um plano de luta consequente que passe pela convocação urgente de uma greve geral em todo o país, com manifestações nas ruas, a criação de comités de luta nas cidades, nos centros de trabalho e de estudo, e a defesa de uma frente unida das forças que constituem a esquerda sindical e política combativa.

Nenhum impeachment poderá conseguir sequer metade daquilo que as massas podem arrancar através da ação direta nas ruas. Há que romper com o cancro da colaboração de classes e lutar por um governo dos trabalhadores com um programa socialista.

 


Notas:

1. A China tornou-se o primeiro parceiro comercial do gigante latino-americano, e os laços com o país asiático, no que diz respeito a investimentos e exportações, estão a reforçar-se. Ao mesmo tempo, o governo de Bolsonaro é abertamente pró-americano e "anticomunista". Esta contradição ameaça a estratégia económica e os lucros de um setor importante do grande capital brasileiro.

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