O esforço e a capacidade técnica de todos os trabalhadores do Serviço Nacional de Saúde (SNS) contribuiu para a contenção da pandemia em Portugal. Arriscando a vida na linha da frente estão os enfermeiros, auxiliares e médicos do SNS.

Há que dizer que estes trabalhadores não precisam de ser chamados de “heróis” por aqueles que accionaram a requisição civil contra a greve dos enfermeiros, que aprovaram orçamentos do Estado austeritários ano após ano e mantiveram o subinvestimento crónico do SNS enquanto canalizavam recursos para empresas privadas.

A Centelha entrevistou Joana*, enfermeira sindicalizada no SEP (Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, afecto à CGTP) e actualmente a trabalhar num Hospital da Área Metropolitana de Lisboa.

A Centelha: Como foi a tua experiência dos últimos anos, enquanto trabalhadora de um sector em luta?

Joana: No curso já vinha acompanhando a luta, que dura há muitos anos, mas quando comecei a trabalhar, há cerca de dois anos e meio, consegui perceber na prática porque se luta pela contratação de mais profissionais para o SNS, pelo aumento do salário e pelo descongelamento das carreiras — que estão congeladas há mais de uma década. Participei nessa onda de greves, que acabou há cerca de um ano, quando conseguimos o pagamento extra para os enfermeiros especialistas. Percebi nessa altura que os enfermeiros estavam muito motivados para a luta e para tentar melhorar as nossas condições, mas que depois, no final, sentimo-nos traídos pelos sindicatos porque a única vitória foram os benefícios alcançados para os enfermeiros especialistas, um sector residual dentro da profissão. Desistiram do resto do pessoal, fazendo o “jeito” à geringonça.

AC: Fala-nos um pouco da experiência quotidiana de uma enfermeira, na linha da frente do combate contra esta pandemia.

J: Teve várias fases. Primeiro houve uma desvalorização da pandemia, depois mudou-se a abordagem quando se percebeu que ia efectivamente chegar cá e que tínhamos que estar preparados. Eu acho que nos preparámos melhor do que alguns países. No entanto ninguém estava preparado, muito menos o nosso SNS, que tem pouco investimento, e muito do orçamento é transferido para os privados. Esta política manteve-se durante a pandemia - o Ministério anunciou que se o SNS não chegasse iriam pagar camas no privado. O meu hospital recebeu exclusivamente doentes com COVID-19. Foi efectuada uma remodelação e treino específico mas não se deu o boom que se esperava. Muitos enfermeiros ficaram então sem turnos ou com poucos doentes por turno. Houve má organização, porque ao mesmo tempo havia enfermeiros noutros serviços a fazer turnos extra, e isso também se refletiu na remuneração ao fim do mês. Devido aos salários baixos, os turnos são uma parte importante do salário. Com menos turnos, acabas por ganhar menos horas de qualidade, o que implica perdas de remuneração significativa, tal como aconteceu com outros trabalhadores da saúde.

AC: Todos os hospitais têm os meios de tratamento necessários?

J: A falta de condições e a falta de material já aconteciam antes da pandemia. Os hospitais têm contratos anuais com as empresas de material, e especialmente quando os contratos estão a acabar, há muita falta de material. Quando chegou a pandemia, todo o material e equipamento de protecção individual foi encaminhado, e bem, para os serviços de infecciologia e para os que tinham doentes com COVID-19. Mas em relação às máscaras, por exemplo, chegámos a ter de usar a mesma máscara o turno inteiro. Ou era assim, ou no dia seguinte não tínhamos máscara. Agora já há, e pelo menos eu não sinto essa falta de material, mas no início foi complicado. Acho que o SNS não estava preparado para isto, e só teve tempo para se preparar porque não tivemos um boom de casos. Se tivéssemos chegado ao estado a que chegou Itália teria sido bem pior! Não temos camas suficientes, não temos profissionais suficientes, não temos investimento suficiente no SNS.

AC: Que diferenças de condições de trabalho existem entre os vários hospitais?

J: Existem regras diferentes entre cada centro hospitalar, mas em termos de remuneração é tudo igual. O problema é que há certos hospitais que têm pessoal a recibos verdes. Eu tenho colegas meus no Hospital São Francisco Xavier, a recibos verdes. Um hospital público! Nos hospitais privados e PPPs os enfermeiros começam por ganhar menos, mas depois têm progressão de carreira e começam a ganhar mais do que no público. Em termos de equipamentos, meios auxiliares de diagnóstico, etc., há mais condições nesses hospitais que, por serem privados, têm mais investimento. Nos hospitais públicos do interior penso que é ainda pior por terem menos investimento. Já os hospitais universitários, como o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, o Santa Maria, e o de Coimbra, que são centros universitários, acabam por ter mais condições devido ao ensino e à investigação.

AC: Como difere a tua experiência enquanto enfermeira portuguesa de outros colegas de outros países europeus?

J: Nós, enfermeiros portugueses, somos muito bons e temos muito boa formação. Há muitos países em que a formação é muito mais técnica e a nossa abrange várias áreas e somos muito bem vistos lá fora. Principalmente em Inglaterra, há muitos enfermeiros portugueses. Têm muito melhores condições para trabalhar noutros países porque se ganha muito mais, há muito mais equipamentos, são muito mais reconhecidos do que aqui. Em Inglaterra és capaz de ganhar 2 mil euros a fazer o mesmo que se faz aqui, mas com muito melhores condições. Além disso, há progressão de carreira, e aqui eu trabalho há dois anos e ganho o mesmo que uma colega minha que trabalha há vinte. É injusto.

AC: Qual a opinião entre o pessoal hospitalar relativamente ao papel desempenhado pelo sector privado da saúde durante esta pandemia?

J: Depende muito da visão política das pessoas. Ou seja, há colegas que concordam que se o SNS não tem capacidade, há que recorrer aos privados e pedir ajuda, mas pagando aos privados. E depois há a minha óptica: não vamos dar dinheiro aos privados! Se precisamos tanto daqueles hospitais, principalmente durante a pandemia, então tinham sido nacionalizados. Não podemos é continuar a dar dinheiro aos privados através de cheques para cirurgias ou com consultas pagas...são milhões de euros. A pandemia foi mais uma desculpa que tiveram para pôr dinheiro nos privados. Mas entre os meus colegas ainda depende muito. Há gente que mantém a visão que os privados são dos proprietários e que o Estado não tem direito nenhum de se apropriar e usufruir deles. Muitos ainda vêem a nacionalização como um extremismo.

AC: E relativamente ao governo?

J: A ideia que eu tenho é que ficaram com uma boa imagem. Não chegámos ao ponto de Espanha nem de Itália. Não tivemos os serviços sobrelotados com doentes de COVID-19 e agora estão a conseguir voltar aos poucos ao normal, que nunca vai ser um verdadeiro normal. Mas o que eu acho é que isto aconteceu porque não houve o boom, e as pessoas até têm noção disso. A imagem que passou foi de que o Costa e o governo conseguiram fazer as coisas minimamente bem. Mas ninguém gosta da Ministra da Saúde, Marta Temido, nem da Directora da Direcção-Geral de Saúde, Graça Freitas, porque andavam sempre a dizer informações contraditórias. Diziam que o pico ia ser no final de Maio, depois que seria no início de Junho, mas afinal depois já tinha passado e tinha sido em Março. Podiam não ter dito nada se não tinham a certeza daquilo que estavam a dizer. Isso fez com que muita gente saísse de casa.

AC: Que papel estão a desempenhar os sindicatos e associações profissionais do sector nesta pandemia? É suficiente?

J: Há muitos sindicatos de enfermagem e que andam há muito tempo a lutar pelo sector, mas mantêm uma perspectiva de não unificação e de conflito entre eles. Por exemplo, cada vez que um marca uma greve, o outro não marca. Nesta pandemia, acho que finalmente se adquiriu mais consciência daquilo que os enfermeiros valem, o quão importante é o SNS, e que se devia investir mais. Os enfermeiros estão a ganhar consciência de que agora devíamos lutar por mais financiamento e por melhores condições.
Não sei como é que os sindicatos irão encarar esta vontade. Se como uma boa hipótese de voltar a marcar passo ou se para voltar à luta, até porque o PCP e o BE saíram da geringonça embora continuem amarrados a uma política de conciliação de classes com o PS. O SEP fez muito pouco no passado e não sei se o irá fazer agora, mas eu acho que é uma óptima altura para lutar. A consciência dos trabalhadores da saúde e dos enfermeiros acho que aumentou e sabem que precisamos de melhores condições para trabalhar. Ficou provado o risco que todos nós corremos a ir trabalhar todos os dias, com família e filhos em casa - pelo menos o subsídio de risco temos de ganhar. Mas não sei se os sindicatos vão estar ao nosso lado. Há muita gente que depois destes anos todos a lutar sem termos conseguido quase nada já desistiu dos sindicatos e perdeu a confiança. Tenho um colega que, se aparecer pessoal do sindicato lá no serviço, nem fala com eles. Está completamente descrente nos sindicatos. Andámos em greves e a perder o nosso dinheiro sem conseguirmos quase nada. Como se tem visto ultimamente nas lutas dos enfermeiros, tem havido muita coisa feita à revelia dos sindicatos - através da Ordem por exemplo. Queriam colocar a política fora da luta e fazer apenas lutas sectoriais, pela enfermagem, sem “esquerdas nem direitas”. Mas isto aconteceu porque os sindicatos e o SEP em particular não coordenou acções de luta, porque não se uniu quando a UGT tentou lutar pelos enfermeiros também. Em vez de se juntarem e fazerem a luta com eles, separaram-se, argumentando que se encontravam em conversações com o governo. Na última greve que houve da função pública não houve um único sindicato de enfermagem a aderir. Ainda por cima eram da CGTP. Não sabiam dizer quais eram os serviços mínimos, nem sequer tinham feito pré-aviso de greve.

AC: Que reivindicações achas que os trabalhadores da saúde devem levantar para combater a crise sanitária e a degradação do SNS?

J: Mais profissionais de saúde, mais equipamentos e condições nos próprios hospitais, há uns que estão praticamente a cair, aumentar a remuneração de todo o pessoal da saúde e impedir que o dinheiro vá para os privados. Acabar com as PPP's, com os cheques das consultas e das cirurgias, porque todo o dinheiro que é transferido para os privados, se fosse investido no público, conseguiríamos colmatar as falhas. Acho que esse é o principal problema. Toda a gente precisa do SNS, como se viu agora. Nem os mais ricos foram para os hospitais privados. Portanto viu-se que não precisamos dos privados para nada. Devia nacionalizar-se os hospitais privados, ou, pelo menos, as PPP's. Acho que é uma boa altura para todos os enfermeiros e todos os trabalhadores do SNS se juntarem e fazerem uma luta conjunta pelo SNS. Acho que podemos trabalhar nisso porque agora estamos com outra consciência. Percebem que estamos todos no mesmo caminho, independentemente de serem médicos, enfermeiros ou auxiliares. Estamos todos nas mesmas condições e temos todos de lutar pelo mesmo.

*nome fictício

JORNAL DA ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA

JORNAL DA LIVRES E COMBATIVAS

Os cookies facilitam o fornecimento dos nossos serviços. Ao usares estes serviços, estás a permitir-nos usar cookies.