A 11 de abril, o Peru realizava eleições legislativas e a primeira volta das presidenciais.

Seis meses depois do levantamento de massas que derrubou o Governo oligárquico de Manuel Merino, estas eleições — convocadas para tentar pôr um fim à crise política que vive o país, acalmar a indignação social e legitimar um Governo estável sob o controlo da classe dominante — não conseguiram o objetivo pretendido.  

O mal-estar com as políticas neoliberais, os cortes e a corrupção — que fizeram do Peru um dos países mais desiguais e desprotegidos do continente com a pandemia1 — voltou a expressar-se, agora no terreno eleitoral, com a queda dos partidos burgueses tradicionais2, o aumento da abstenção (que, apesar da obrigatoriedade do voto, roçou os 30%, face aos 20%, em média, em eleições anteriores), o voto nulo e em branco que, em conjunto, somam mais de três milhões (18,88%), e a inesperada vitória na primeira volta de Pedro Castillo, um professor rural vindo de uma das zonas mais pobres do país e dirigente da combativa greve de professores que abalou o país em 2017.

Castillo focou a sua campanha em denunciar a corrupção da oligarquia e da desprestigiada casta política limenha, defendeu a nacionalização de várias empresas e setores estratégicos como os hidrocarbonetos e a exploração mineira, o aumento do financiamento para a educação e saúde públicas de 4 para 10% do PIB, baixar os salários dos deputados e ministros (incluindo o seu se for eleito presidente) e convocar uma Assembleia Constituinte para acabar com a odiada constituição imposta pela ditadura de Alberto Fujimori em 19933. Com estas propostas, ganhou nas cinco regiões mais pobres do país, recebendo um apoio especialmente massivo nas comarcas mineiras, onde supera, em alguns casos, 50% dos votos válidos4

Polarização política e o colapso dos partidos burgueses tradicionais 

Os resultados eleitorais também põem em evidência a crescente polarização política à direita e à esquerda que vive o país. Com 99,9% dos votos apurados, Castillo obteve 2.673.475 votos (19,11% de votos válidos) e o movimento que o apoia, o Perú Libre, passa de não ter qualquer representação parlamentar ao principal grupo da nova Assembleia, com 37 dos 130 deputados. 

No bloco da direita, os desprestigiados partidos burgueses tradicionais são substituídos por outras forças de direita e extrema-direita com um discurso raivosamente anticomunista. A segunda candidata mais votada, e opositora de Castillo na segunda volta, foi Keiko Fujimori, filha do ditador, que reivindica o legado do seu pai apresentando-se como a garantia contra a chegada da “esquerda radical” ao Governo. Fujimori obteve 1.870.173 votos (13,36%) e o seu partido será a segunda força parlamentar, com 24 assentos. Rafael López Aliaga, um empresário que se apresenta como “o Bolsonaro peruano”, ficou em terceiro (1.635.684 votos, 11,69%) e Hernando de Soto, economista neoliberal responsável pelas políticas económicas do fujimorismo, em quarto, com 1.625.555 votos (11,58%).

Porque é que Castillo cresce e a esquerda tradicional recua? 

O apoio a Pedro Castillo e ao Perú Libre aumentou durante a campanha à medida que os meios de comunicação burgueses agitavam o espantalho da Venezuela e da Bolívia para o atacar, da mesma forma que fizeram com Verónika Mendoza, candidata dos Juntos por Perú (JPP), a coligação que agrupa os partidos tradicionais de esquerda, como os dois partidos comunistas e diversas forças provenientes da Frente Amplio (FA). 

A principal diferença entre ambos os candidatos é que Mendoza, melhor situada nas sondagens antes da campanha, pagou pela sua viragem à direita em busca do suposto “voto ao centro”. Já antes questionada pelos seus pactos com várias forças burguesas no parlamento durante os últimos anos, demarcou-se das nacionalizações e da intervenção estatal na economia defendidas por Castillo, insistindo em políticas de “moderação”. Desta maneira, passou de ser vista como a esperança da verdadeira mudança (em 2016, com a sua candidatura a liderar a FA com 2.874.000 votos, 18,74%, esteve quase a alcançar a segunda volta) a ficar em sexto nestas eleições com 1.099.712 votos — 7,85%. 

A vitória de Castillo não provocou surpresa e desconforto apenas na classe dominante. Muitos dirigentes da esquerda tradicional estão em choque após se verem ultrapassados, em mais de 1,5 milhões de votos, por uma força até agora sem representação nacional. Entre muitos ativistas e lutadores e lutadoras de esquerda, dos movimentos sociais, das organizações feministas e LGBTI, especialmente nas grandes cidades, também existe perplexidade e muitas dúvidas acerca de que posição defender na segunda volta. 

O motivo é que Castillo e os dirigentes do Perú Libre, em conjunto com a defesa das nacionalizações, do emprego, da saúde e educação públicas, mantêm uma postura completamente equivocada e abertamente retrógrada relativamente às reivindicações da comunidade LGBTI e do movimento feminista, negando-se a apoiar o direito ao aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e os direitos das pessoas trans, e opondo-se, inclusive, à introdução da questão de género nos programas curriculares. 

Esta questão é muito importante. O Peru é um dos países do continente com mais femicídios e denúncias por violência e opressão de género. O movimento feminista cresceu em força e centenas de milhares de mulheres trabalhadoras aderiram à luta pelos seus direitos, assim como a comunidade LGBTI. A oposição de Castillo às suas reivindicações (e ainda a outras como a da eutanásia) provoca um repúdio lógico entre milhares de ativistas feministas e LGBTI e setores avançados da esquerda política e social — especialmente nas grandes cidades — como mostram os resultados na capital. Em Lima, que concentra quase 25% da população, o Perú Libre obteve apenas 5% de apoio, enquanto a direita e a extrema-direita somaram 50% do voto válido. 

Um fator que explica este resultado é a viragem à direita de setores importantes das camadas médias (mais numerosas na capital), que beneficiaram, durante os anos 90 e a primeira metade do século XXI, das políticas de desregulação, da abertura ao investimento estrangeiro e da precariedade laboral, vendo com pânico a possibilidade de um processo revolucionário como os vividos noutros países do continente. Porém, o fator-chave que permitiu a vitória da direita na capital é a abstenção e o designado “voto viciado” (em branco ou nulo). Em Lima, votaram em branco ou nulo cerca de 800.000 pessoas (15%) e a abstenção rondou os 25%. 

Muitos jovens que participaram ou simpatizaram com o levantamento das massas em novembro de 2020, que teve Lima como epicentro, querem uma mudança social profunda, no entanto, rejeitam as posições de Castillo e do Perú Libre em relação à questão de género e outras reivindicações, e, ainda que Verónika Mendoza tenha assumido algumas exigências do movimento feminista e da comunidade LGBTI, tampouco conseguiu atraí-los massivamente devido à indefinição e moderação do seu discurso e programa. 

As concessões de Castillo à reação, um perigo mortal

Uma das batalhas que determinará a segunda volta será a luta por esses milhões de abstenções e votos nulos. 

A classe dominante tem plena consciência disso e está a utilizar todas as armas ao seu alcance para impedir uma vitória da esquerda, que há um mês não aparecia nem nas suas previsões mais pessimistas. Os meios de comunicação peruanos e internacionais — conjuntamente com o já tradicional leitmotiv de que uma vitória de Castillo converteria o Peru numa nova Venezuela — difundem consciente, e hipocritamente, as declarações reacionárias de Castillo e outros dirigentes do Perú Libre, respetivamente à questão de género e dos direitos da mulher, para bloquear o potencial apoio social e eleitoral entre estes setores. 

Isto vincula-se com a estratégia de desqualificação adotada desde o início da campanha pela classe dominante ao tentar associar Castillo com a organização guerrilheira de origem maoísta Sendero Luminoso (SL), cujo sectarismo extremo é recordado como um pesadelo pelas massas e por muitos ativistas de esquerda, incluindo a perseguição da homossexualidade nas zonas rurais que controlava. 

Durante décadas, cada vez que se desenvolveu uma alternativa de esquerda no terreno eleitoral ou na luta social, a burguesia peruana recorreu ao chamado “terruqueo”5, isto é, à sua criminalização, vinculando-a ao SL ou à Movadef, a sua plataforma política. Castillo, que nega categoricamente estas acusações, não é uma exceção. Que tais acusações não o impediram de ganhar, inclusive arrasar, em zonas que foram muito castigadas pelos métodos senderistas, reflete a viragem à esquerda e a procura de uma alternativa revolucionária. Mas a posição completamente nefasta dos dirigentes do Perú Libre perante a questão de género — resultante da origem estalinista de muitos deles e do preconceito de que defender estas bandeiras poderia prejudicá-los na batalha contra a direita nas zonas rurais e mineiras onde têm raízes — favorece a estratégia de atacá-los e isolá-los no resto. 

À medida que se aproxima a segunda volta (prevista para 6 de junho), as diferentes pressões de classe a que estão sujeitos os dirigentes do Perú Libre ver-se-ão intensificadas. Por um lado, a pressão da crise do capitalismo e da luta de classes, incluindo a luta das mulheres trabalhadoras pela igualdade de género, da comunidade LGBTI e pessoas trans. Por outro, a pressão ideológica da burguesia, que vai ficando cada vez mais forte e, além disso, o facto da questão de género estar já a expressar-se noutros aspetos. 

Embora Castillo se tenha destacado como dirigente sindical de base, e o Perú Libre tenha declarado as suas origens como sendo marxista-leninista-mariateguista, face à campanha que os acusa de serem comunistas e de defenderem a luta de classes, apelaram cada vez mais a um discurso abstrato e interclassista, falando dos “interesses do povo”, da pátria, etc., e sublinhando que a sua proposta não é o socialismo, mas sim uma “economia popular com mercados”. 

O seu candidato a vice-presidente, Vladimir Cerrón, manifestou-se a favor dos processos na Venezuela, Bolívia e Equador, todavia, defendendo que o Peru tem uma “realidade diferente” e que “não se podem transpor mecanicamente”. Mostrou também o seu apoio ao modelo chinês e até louvou as políticas de Putin na Rússia. Durante os últimos dias, ainda que continue a insistir na necessidade das nacionalizações e da intervenção estatal na economia, Castillo abriu portas a negociar a sua forma concreta (aceitando não somente a possibilidade de indemnizar os capitalistas, mas também formas de propriedade mistas de capital público e privado). Também negou que pretendia implementar um imposto especial aos mais ricos. 

Por uma frente unida para derrotar Fujimori e lutar por um Governo dos trabalhadores e do povo com um programa socialista

A esquerda peruana está perante uma oportunidade histórica. Se Castillo adotasse um programa socialista, unificando as reivindicações de todos os oprimidos (incluindo as dos movimentos feminista e LGBTI) e defendendo a nacionalização sem indemnização e sob o controlo operário dos bancos, das principais empresas e da terra, para pôr a riqueza nas mãos dos trabalhadores e do povo, planificar democraticamente a economia e satisfazer as necessidades sociais, a sua vitória seria imparável e contagiaria o resto dos oprimidos do continente. 

O prognóstico para a segunda volta é incerto. Num contexto de máxima polarização, onde o voto de direita mobilizar-se-á para apoiar Fujimori, o programa limitado e as posições reacionárias de Castillo quanto à questão de género representam um obstáculo muito sério para alcançar a vitória. 

De qualquer forma, a tarefa da esquerda que se declara anticapitalista e revolucionária não pode ser apelar à abstenção ou ao voto nulo, como fizeram muitos destes grupos na primeira volta. O crescimento vertiginoso, em poucas semanas, de Castillo e de uma força extraparlamentar como o Perú Libre entre milhões de trabalhadores e camponeses, deixa uma lição muito clara para aqueles que — ainda que se declarem marxistas e trotskistas — renunciaram à defesa de um programa de transição para o socialismo e de um plano de luta que pusesse a classe trabalhadora à frente dos oprimidos, e abraçaram a bandeira da assembleia constituinte livre e soberana. 

Existe um sentimento massivo entre os trabalhadores e camponeses de acabar com a constituição neoliberal e reacionária de 1993 e elaborar uma nova que reúna os seus direitos? Evidentemente que sim. Todavia, o apoio a Castillo cresceu quando este pôs ênfase não na Constituinte mas sim nas nacionalizações e em reivindicações como o emprego, a educação e a saúde. 

A tarefa chave do momento é apresentar um programa socialista e um plano de luta que mostrem como concretizar essas reivindicações, implementando esse mesmo programa em cada luta concreta e no terreno eleitoral, desenvolvendo uma campanha própria independente, pedindo o voto crítico em Castillo contra Fujimori, mas organizando mobilizações na rua de trabalhadores, mulheres e jovens para exigir aos dirigentes do Perú Libre que assumam as suas reivindicações e não cedam à pressão nem da burguesia nem dos setores mais reacionários da sociedade, começando pela igreja católica e as igrejas evangélicas.  

Paralelamente, há que apelar tanto a Castillo e ao Perú Libre, bem como os dirigentes da JPP e do resto das organizações políticas e sindicais de esquerda, a constituir uma frente única para lutar por esse programa socialista, vinculando-o à necessidade da ação direta das massas e da organização e mobilização a partir da base, impulsionando assembleias e comités de ação em cada bairro, local de trabalho e de estudos, alargando-os e unificando-os. A tarefa imediata destes comités deve ser dirigir a luta nas ruas e impedir a vitória da direita. Ao mesmo tempo, e desde já, devem converter-se numa ferramenta para dar continuidade ao levantamento de massas de novembro de 2020 e lutar por um Governo dos trabalhadores e do povo que ponha todo o poder político e económico nas mãos dos oprimidos, acabando com o poder dos capitalistas e abrindo caminho para a transformação socialista da sociedade. 

 

1. Segundo dados oficiais, o Peru supera os 55.000 mortos por covid-19, enquanto outras fontes elevam esse número para mais de 100.000. Entre as causas, está a deterioração e a insuficiência do sistema público de saúde, o trabalho informal (75,2% da população ativa), que obriga milhões a trabalhar nas condições que existirem, e o aumento da desigualdade e da pobreza: 40% da população está em risco de pobreza e 43,5% das crianças com menos de 3 anos sofrem de anemia, de acordo com a OXFAM.

2. Os cinco partidos burgueses mais votados nas legislativas anteriores (janeiro de 2020) perderam quase 2,5 milhões de votos (um retrocesso de 40%) e nenhum dos seus candidatos ficou entre os 4 mais votados.

3. Esta Constituição abriu as portas a privatizações massivas e a um ataque brutal contra os direitos dos trabalhadores e camponeses, continuando em vigor sob todos os Governos do país ao longo dos últimos trinta anos.

4.Na medida em que o voto é obrigatório (não votar implica multa) há, especialmente na primeira volta, uma percentagem significativa de votos nulos e em branco (entre dois e três milhões).

5. Nota de tradução: expressão usada no Perú e Bolívia, relativa a “terrorismo”.

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